Magia bíblica: como usar os salmos

A magia de salmos tem muitas coisas em comum com o que já vimos antes com a magia angelical, para bem e para mal. E, inclusive, as duas estão relacionadas, como veremos mais adiante neste texto. Ambas as formas de magia fazem parte de um repertório mais tradicional, tanto da magia popular (folk magic) quanto das práticas mais livrescas da “alta magia” e, assim sendo, nem curandeiros, benzedeiras e rootworkers do Hoodoo, nem cabalistas judeus ou gentios iniciados de ordens como a Golden Dawn estranhariam se um dado ritual recomendar a recitação de um salmo. 

A questão é que, entre os mais jovens, especialmente ligados ao neopaganismo e à bruxaria, esse tipo de indicação pode levar a algumas caretas sendo feitas. A imposição do monoteísmo bíblico não é exatamente sutil, a conversão da Europa ao cristianismo e do mundo árabe ao islã não se deu em termos pacíficos, e a perseguição às bruxas do começo da Idade Moderna ainda deixa um gosto amargo na boca. No entanto, eu acredito que aos estudiosos de magia é importante ter conhecimento de todo tipo de prática e ampliar ao máximo a sua caixa de ferramentas.

O que são os salmos? O termo se refere a um livro bíblico, mais especificamente do Antigo Testamento. Na divisão tripartida judaica, ele pertence aos Ketuvim, “Escritos”, em oposição à Torá e os Nevi’im, “Profetas” (daí que a Bíblia Hebraica é chamada pelos judeus de TaNaKh). Dentre os Escritos, este livro faz parte dos chamados livros poéticos, ao lado de Jó e Provérbios. O que isso significa é que a disposição dos versículos nestes três livros é ela própria organizada diferente, não como prosa, mas como poesia, um fato que muitas vezes é ignorado nas edições que temos por aí (a Bíblia de Jerusalém é um dos raros casos em que textos poéticos são apresentados em versos). O nome “salmos” vem do grego psalmoi, que se refere a eles como composições para serem acompanhadas do saltério, um instrumento parente da harpa. Em hebraico, diz-se tehillim, “preces”, “louvores”.


O rei David tocando harpa (1670), pintura de Jan de Bray

Entende-se, pois, que os salmos são poemas litúrgicos, hinos, que eram cantados pela congregação na época do Segundo Templo (516 a.C. a 70 d.C.). Não é nessa época, porém, que eles teriam sido compostos, e entende-se que muitos são mais antigos do que isso. A maioria deles é atribuído ao rei David, pai de Salomão e o primeiro rei de Israel (se não contar Saul), de séculos antes, apesar de haver um ou outro a quem outro nome é dado (o salmo 90, por exemplo, é assinado por Moisés). Considerando, porém, que é mais provável que este seja um caso de pseudepigrafia (i.e. quando você escreve um texto e diz que é obra de outra pessoa, de preferência famosa), não é daí que vem a evidência de sua antiguidade. Não, na verdade, um indício mais forte aqui é o fato de que muitos salmos revelam uma cosmologia distinta da que se vê em outros momentos da Bíblia. Por exemplo, o salmo 74 apresenta uma visão mítica de Deus que é distinta do que se tem no relato oficial da Criação, no começo do livro do Gênesis:

Todavia Deus é o meu Rei desde a antiguidade, operando a salvação no meio da terra.
Tu dividiste o mar pela tua força; quebrantaste as cabeças das baleias nas águas.
Fizeste em pedaços as cabeças do leviatã, e o deste por mantimento aos habitantes do deserto.

Salmos 74:12–14

A Criação, em Gênesis 1, é pacífica, a obra de um Deus onipotente que tem pleno domínio sobre o universo e cria tudo com sua palavra. Como não há nada que fuja à sua autoridade, não existe a necessidade de um conflito com criaturas primordiais. Aqui no entanto, pelo contrário, estes termos são mais próximos do Chaoskampf que se observa na mitologia de outros locais do Oriente Próximo, como o cananeu, com o embate entre o deus atmosférico Ba‘al e seus irmãos monstruosos Yam, o Mar, e Mot, a Morte, ou o babilônico, com a vitória de Marduk sobre Tiamat, também um monstro primordial marítimo, e seus filhos. Mark S. Smith, em The Origins of Biblical Monotheism: Israel’s Polytheistic Background and the Ugaritic Texts, comenta justamente isto, que haveria uma noção mitológica do divino anterior em Israel que foi sendo sobrescrita pelos autores bíblicos ligados ao Templo. Esse processo, no entanto, não foi completamente limpo e deixou algumas marcas, até mesmo porque este tipo de descrição mítica tem um alto grau de ressonância emotiva (pois é legal, todo mundo gosta de uma pancadaria, e não é à toa que o gênero épico era tão popular), o que dificulta se livrar dele. Em outros casos ainda, temos salmos como o 29, compreendido por alguns autores como originalmente um hino a Ba‘al convertido ao Iavismo (link aqui).

A coisa, como se observa, é um pouco mais complexa do que parece à primeira vista. E é tudo muito caso a caso.

Mas, voltando à sua organização: os salmos que constam na Bíblia são 150, divididos em cinco seções, que vão do salmo 1 ao 41, do 42 ao 72, do 73 ao 89, do 90 ao 106 e do 107 ao 150. Há algumas confusões, no entanto, e a Septuaginta e a Vulgata (as traduções para o grego e o latim) utilizam uma outra numeração1, inclusive de versículos — esta numeração, com base nas traduções, é usado por católicos, ao passo que a numeração hebraica é seguida pelos protestantes e, claro, judeus. E também existem salmos apócrifos, escritos em hebraico, mas cujo original não foi preservado e que só existem agora em línguas como o grego ou o siríaco.

Apesar de serem louvores, há uma outra dimensão aos salmos que se revela quando lançamos sobre eles um olhar mais detido. O infame salmo 109, por exemplo, causa uma séria quebra de expectativa quando lemos os seus versículos:

Põe sobre ele um ímpio, e Satanás esteja à sua direita.
Quando for julgado, saia condenado; e a sua oração se lhe torne em pecado.
Sejam poucos os seus dias, e outro tome o seu ofício.
Sejam órfãos os seus filhos, e viúva sua mulher.
Sejam vagabundos e pedintes os seus filhos, e busquem pão fora dos seus lugares desolados.

Salmos 109:6–10

Neste caso, fica evidente que se trata de uma maldição. A existência desse tipo de material (cujo termo técnico é “salmos imprecatórios”) sugere um outro uso dos salmos que não apenas louvor à grandiosidade de Deus e expressão de desejos de bem-estar generalizado que é o que se costuma associar à religião. Não, pelo contrário, temos aqui um objetivo mundano bem determinado e expresso em termos claros, que aponta para o que entendemos como magia prática. 

Para qualquer um que tenha sido criado em casa de família católica, acostumado a simpatias e promessas a santos, isso, é claro, não deve causar grande surpresa. O uso mágico de encantamentos, inclusive, consta na própria Bíblia. No livro de Samuel, tem um momento em que o rei Saul se encontra aflito, influenciado por um mau espírito enviado por Deus (ruach Elohim ra‘a) e a música de David, o autor de vários salmos, o cura (1 Sam. 16–23). Assim, não é de se espantar que uma rica tradição nesse sentido tenha se formado. Como consta no Talmude (link aqui), os rolos da Torá eram usados como ferramenta mágica, especialmente para cura, e vários versículos bíblicos têm um histórico de usos tanto em recitação quanto em amuletos2

No mundo medieval e renascentista, dignos de menção, nesse sentido, são os grimórios da Chave de Salomão e O Sexto e Sétimo Livros de Moisés3. A Chave de Salomão, como se sabe, nos mostra um grupo de 49 talismãs, chamados pantáculos, ligados aos 7 planetas, e nos ensina uma sequência de salmos a serem recitados para sua consagração (8, 21, 27, 29, 32, 51, 72, 134) e outros para a construção de um círculo mágico (2, 54, 113, 67, 47, 68). Já O Sexto e Sétimo Livros de Moisés formam um grimório medieval que ensina várias coisas, uma das quais é o uso mágico dos salmos, contido no capítulo que traz este nome, Sepher Shimmush Tehillim. Este livro foi incorporado pelos praticantes de Hoodoo e entende-se que parte daí o hábito do uso de salmos nessa tradição. Outro livro relevante nesse sentido, mais propriamente dentro de uma tradição cristã, sem tantos elementos judaicos, é o Enchiridion, atribuído ao Papa Leão III4.

A magia com salmos apresenta várias vantagens. A primeira é que ela detém um grande poder derivado tanto de sua antiguidade quanto da manutenção da egrégora abraâmica, em suas várias vertentes. O fato de que, durante séculos, inúmeras pessoas recitaram esses salmos para sua conexão com o divino — e ainda o fazem — os reveste de um grande poder que pode ser canalizado tanto para propósitos espirituais quanto mundanos. Depois, temos o fato de que cada salmo tem algumas aplicações específicas, e 150 salmos é muita coisa, certamente você vai encontrar um que se aplique à sua situação, não importa qual ela seja. 

Por fim, temos as vantagens práticas. Para os seus usos mais básicos, em essência, você não precisa de muito para magia de salmos, apenas uma Bíblia ou uma edição só do livro dos salmos. Nada de varinha, círculo, etc. Depois, tem o fato de que, se você é um praticante de magia que ainda mora com os pais e tem pais cristãos, esse é o tipo de coisa que é mais fácil de se fazer sem ser expulso de casa. Nessa situação, muito provavelmente você não vai poder ter uma biblioteca mágica robusta — há grandes riscos de o seu exemplar da Ars Goetia ou do Livro de São Cipriano acabar queimado, dependendo do quanto os seus pais são dados ao dramático — , nem reunir uma grande quantidade de parafernália ou realizar rituais muito elaborados. No entanto, acho muito difícil que eles estranhem se encontrarem uma Bíblia na sua estante ou te flagrarem rezando salmos. Pelo contrário, aliás, é muito possível até mesmo incluí-los nesse tipo de prática… contanto que você use da esperteza e não descreva nada disso como “magia”5. E, claro, se você já pertencer à religião, optar pelos salmos para dar uma ajudinha para manifestar resultados é uma ideia bastante óbvia.

Por fim, quanto à questão do neopaganismo, bem… realmente é um pouco mais difícil do que com o caso da magia com anjos, que, como eu argumentei, é bem documentado que não era restrito ao mundo abraâmico. O salmo 137, por exemplo, fala em matar as crianças da Babilônia e o salmo 96 diz que os deuses das nações são meros ídolos. Porém, como dito, há um grau de complexidade a mais na composição dos salmos que aponta para origens pré-abraâmicas, e Damien Echols, que trabalha tanto com anjos quanto com divindades sumério-babilônicas, também vem apontando para as semelhanças entre as descrições dos salmos e a iconografia mesopotâmica. Igualmente Sam Block, outro magista por quem tenho imenso respeito, trabalha tanto com salmos quanto com deuses gregos e orixás (ele é iniciado na Santería). É claro que, se você se sentir desconfortável demais com esse aspecto desses textos, então realmente não posso indicá-los para sua situação, mas quem tiver menos resistência certamente encontrará neles ferramentas de grande poder e utilidade.

O que eu vou ensinar agora são alguns usos de salmos. É óbvio que eu não pretendo esgotar as possibilidades (nem creio que isso seja possível), mas dá para ter uma noção do que dá para fazer com essas preces antigas, e o magista com uma verve mais experimental certamente conseguirá pensar em mais ideias ainda.


Um talismã em prata para proteção do viajante, com a letra hebraica he o versículo 121:8, “O Senhor guardará a tua entrada e a tua saída” (fonte).

O uso devocional diário

Quem acompanha os meus textos desde o começo sabe o quanto eu enfatizo a importância de se ter uma prática diária, e o trabalho devocional é uma parte substancial dessa rotina. Se o que se vê nos salmos te inspira, se a relação que os salmistas estabelecem com o divino entra em ressonância emocional com você, então nada mais adequado do que estabelecer uma rotina diária de leitura de salmos. O modo como você vai fazer isso depende de você, do seu tempo disponível e o esforço que você está disposto a dedicar. Feito com vontade e envolvimento, esse pode ser um trabalho intenso de conexão espiritual.

Uma possibilidade simples e que não exige grande esforço seria recitar todos os dias o salmo 23. Este é um dos salmos mais famosos e é usado para todo tipo de trabalho, para atrair amor, prosperidade, proteção, sabedoria, etc. Sendo um salmo curto também, é possível rezá-lo todos os dias sem afetar o resto da rotina. Outras opções boas nesse sentido ainda são os salmos 32, 62 e 112.

Entre os judeus, existem algumas formas de leitura diária de salmos. Um desses calendários pode ser conferido no Chabad.org, onde observamos que, por exemplo, no dia de hoje, segunda-feira de 7 de dezembro de 2020, equivalente ao 21 de Kislev de 5781, os salmos para serem recitados são o 104 e 105. Essa prática já demanda um pouco mais de dedicação, mas tem uma ainda mais exigente que envolve recitar o livro todo dos salmos a cada mês — ou seja, 150 salmos divididos em 30 dias, totalizando 5 salmos todos os dias. Você pode seguir algum destes calendários, uma prática que é reforçada pelos milhões de judeus que fazem o mesmo, ou até mesmo conceber o seu próprio.

Um ritual simples

Este é uma das formas de construir um ritual para manifestar resultados. Não é a única, mas funciona e é simples o suficiente para ser feita por iniciantes e poder ser incrementada conforme a necessidade, inclusive com materiais, como as mojo bags do Hoodoo, que também utilizam salmos em suas criações. Você só vai precisar de uma vela branca (recomendo de 7 dias para trabalhos mais exigentes), um copo com água, um exemplar da Bíblia, um pedaço de papel e uma caneta. Cada salmo tem algumas aplicações específicas — um serve para proteção, outro prosperidade, outro para combater calúnias, etc. Recomendo que você confira uma lista de funções de cada salmo e veja qual se encaixa nas suas necessidades. Essa lista pode ser conferida num site como o da Association of Independent Readers and Rootworkers, no Sexto e Sétimo Livros de Moisés ou num livro como o Qabbalistic Magic, de Dolores Ashcroft Nowicki e Salomo Baal Shem. Infelizmente eu não tenho esta lista em português, mas pretendo divulgar algo do tipo em breve. Enquanto isso, eu deixo a seguinte lista de sugestões:

  • 4: contra má sorte
  • 7: vitória jurídica
  • 8: favorecer os negócios
  • 14 e 36: contra difamação e calúnia
  • 23: multiuso (prosperidade, amor, proteção, sabedoria)
  • 28: apaziguar um inimigo
  • 33: paz familiar
  • 40: contra espíritos malignos
  • 61: bênção a um novo lar
  • 75: arrependimento e limpeza de pecados
  • 84: cura
  • 102 e 103: fertilidade
  • 111: fazer amizades
  • 112: poder, sucesso, abundância
  • 114: prosperidade
  • 121: segurança à noite, especialmente ao viajar

Uma vez escolhido o salmo com o qual você pretende trabalhar, vamos ao ritual, então. Eu só recomendo que o salmo seja lido em silêncio antes, para você se familiarizar com o seu conteúdo e não titubear na hora da leitura, o que tira um pouco da força do ritual. É possível combinar salmos também (e o Sam Block, por exemplo, tem uma receita poderosa de limpeza com um banho usando os 7 salmos penitenciais), mas vamos nos concentrar a princípio no uso de um salmo apenas.

Como eu sempre recomendo, é importante que o espaço esteja limpo e você mesmo idealmente esteja no maior estado de pureza possível. Nada de chegar direto da balada e tentar fazer magia de salmo ou qualquer outro tipo de magia divina, porque as chances de dar ruim são grandes. Por estado de pureza, entende-se estar banhado e usando roupas limpas, não ter feito sexo durante algum tempo (pelo menos no dia, vai, não é tão difícil6) e nem ter bebido álcool ou consumido alimentos impuros7. Se for possível estar em jejum, melhor ainda. Eu recomendaria tirar uns minutos antes para meditar e limpar a mente para chegar no ritual num estado relaxado e receptivo. Mais informações sobre limpeza e purificação podem ser conferidas no meu texto sobre o assunto.

Quando chegar a hora, então, volte-se para o leste e acenda a vela e realize um ritual preliminar adequado (de novo, temos já um texto sobre isso também). Pode ser o Ritual Menor do Pentagrama ou outro banimento, mas a Dolores e o Salomo no seu livro ensinam ainda um ritual simples usando hexagramas e o nome divino atribuído a cada salmo, o que também pode ser usado. Outras boas possibilidades são a Prece Cabalística de Lévi, a prece preliminar de Rufus Opus ou ainda A Grande Invocação, como vimos no meu texto anterior. Estas fórmulas são úteis para marcar o início do ritual.

Feito isto, com os braços abertos para o céu, recite uma prece simples dirigindo-se a Deus e pedindo que seus anjos o escutem, para realizar aquilo que você deseja. Esta prece pode ser simples ou complexa, pode usar uma linguagem mais formal, cheia de Tu e Vós, ou informal, empregar os vários nomes de Deus, Adonai, Elohim, Tzabaoth, Ehyeh, etc., ou apenas se referir ao Eterno, de acordo com as suas preferências. Na sequência, passamos à recitação do salmo em questão. Via de regra, um bom número é repeti-lo 7 vezes, mas você pode escolher outros números relevantes se você entender de Cabala. O salmo, via de regra, já envolve uma petição (como vimos com a maldição do salmo 109), mas eu gosto de ter um pedaço de papel para escrever o que eu quero que aconteça, em termos mais exatos (lembre-se de incluir um prazo para isso, se fizer sentido). Este papel, por sua vez, é deixado ao pé da vela, no altar. Por fim, deixe o seu exemplar da Bíblia também no altar, aberta na página do salmo em questão, então agradeça e encerre o ritual. Deixe o altar assim até que a vela termine de queimar e não esqueça de usar um protetor de velas para velas de 7 dias. A água, ao fim do ritual, pode ser bebida ou despejada na terra.

Uma vez manifestado o resultado desejado, repita esta mesma estrutura ritual para agradecer (exceto pela parte do papel, claro), empregando o salmo 150, que é oficialmente o salmo de agradecimentos.

Usar versículos como mantras

Mantra é uma palavra em sânscrito que significa “instrumento do pensamento” e se refere a um texto ou oração sagrada, um hino védico ou fórmula sacrificial, um encantamento ou verso místico, derivada da raiz man-, que quer dizer “pensar” (e também dá no inglês mind). A palavra foi tomada emprestada pelas línguas ocidentais, que enfatizaram o aspecto repetitivo das meditações com mantras, a ponto de muitas vezes qualquer palavra ou frase que seja repetida, por mais mundana que seja, ser chamada de “mantra”. Apesar de ser um empréstimo, o conceito em si não é estranho ao Ocidente e antigo Oriente Próximo. Na obra inglesa medieval de misticismo cristão A Nuvem do Não Saber, as palavras “God”, “love” e “sin” são sugeridas como mantras, e o conceito também já havia sido bem desenvolvido entre místicos judeus. Aryeh Kaplan, em Jewish Meditation: a Practical Guide, elenca uma pequena lista das menções a esse tipo de prática.

Kaplan menciona, por exemplo, a literatura mística da tradição de Hekhaloth, que ensina umas fórmulas místicas para serem repetidas 120 vezes; o mestre cabalista Isaac Luria, que utilizava trechos do Zohar como mantras; e o líder rabínico Nachmânides da Bratislava, que ensinava o uso do mantra Ribbono shel Olam (Senhor do Universo) para conexão com Deus. Mas o mais interessante para nós é a técnica da escola de Safed chamada gerushin, que consistia em repetir um dado versículo bíblico como mantra. O propósito disso é entrar em comunhão com o versículo, a fim de obter dele uma compreensão mais profunda, mais intuitiva do que analítica. Porém é certo que a repetição constante de um versículo como “Prosperidade e riquezas haverá na sua casa, e a sua justiça permanece para sempre” (salmo 112:3) ajudará a atrair as forças (anjos) de prosperidade e manifestá-la no plano físico também.

Complementar invocações

A associação entre os anjos e os salmos não é de hoje. Para cada um dos 72 anjos do Shemhameforash, há um versículo específico associado. Por exemplo, para Vehuyiah, também chamado de Vahaviah, o primeiríssimo anjo, associado ao nome VHV, temos o salmo 3:3, “Porém tu, Senhor, és um escudo para mim, a minha glória, e o que exalta a minha cabeça”. Assim, num ritual para o anjo, este versículo pode ser usado como invocação ou transcrito para criar um talismã. Esta associação é bastante tradicional, como se pode ver na Wikipédia, mas quem quiser uma fonte mais fidedigna pode encontrá-la no livro do casal Sandra e Tabatha Cicero, Tarot Talismans: Invoke the Angels of the Tarot8. Já a Mônica Buonfiglio, em Magia dos Anjos Cabalísticos, sugere o uso do versículo 3:3 em talismãs, mas dá o salmo 3 inteiro como o salmo do anjo. 

Para outros anjos, aí já é preciso um pouco mais de pesquisa. No caso dos arcanjos mais famosos, o Big Four, é possível conferir os salmos onde aparecem as palavras que compõem seus nomes. Por exemplo, o nome Michael quer dizer “quem é como Deus?” e o salmo 113:5 pergunta exatamente isto: “Quem é como o Senhor nosso Deus, que habita nas alturas?”. Assim, eis aí um versículo que pode ser usado nesse sentido. Para Rafael, encontramos algo semelhante no salmo 147:3, “[Deus] sara os quebrantados de coração, e lhes ata as suas feridas”; para Gabriel o salmo 28:7 (“O Senhor é a minha força e o meu escudo”); para Uriel o 87:20 (“O Senhor é a minha luz e a minha salvação”); e Raziel o 80:10 (“Os montes foram cobertos da sua sombra, e os seus ramos se fizeram como os formosos cedros”)9. Nos casos das invocações de versículos curtos, eu recomendaria ainda aprender um pouquinho de hebraico e utilizar a invocação no original. Em alguns sites é possível escutar a pronúncia e acompanhar.

Mas e os arcanjos dos planetas? Pois, para eles há duas possibilidades. A primeira é conferir os salmos usados nos pantáculos da Chave de Salomão (há um versículo na beiradinha de cada um). A segunda é recorrer ao salmo 119. Sendo o mais longo do livro, com 176 versículos, o salmo 119 é escrito segundo uma lógica alfabética: os primeiros 8 versículos são dedicados à letra hebraica álef, a primeira do alfabeto, e todos começam com esta letra. Os 8 versículos seguintes começam com bet, a segunda letra. Os 8 que vêm depois, com gimel, a terceira letra, e por aí vai, até fechar todas as 22, em ordem. Assim, consultando o Sefer Yetzirah, onde é traçada a relação entre as letras hebraicas e os planetas e constelações, é possível encontrar os versículos adequados para cada força cósmica e seu arcanjo associado. Por exemplo, para trabalhar com Rafael como arcanjo de Mercúrio, eu utilizaria os trechos ligados à letra peh, versículos 129–13610. Para Zuriel, o arcanjo de Libra, ligado à letra lamed, versículos 89–96. E assim por diante. Tendo um salmo e o sigilo do anjo, já dá para fazer um trabalho bastante substancial.

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E é isto. Esta é a minha introdução à magia com salmos. Por fim, vale lembrar que existem dois conceitos cabalísticos importantes que entram em jogo na hora do uso desse material. O primeiro é kavanah, entendido como “intento, propósito, concentração”. É o contrário dos gestos automáticos do dia a dia e o tipo de coisa que todo magista deve dominar se pretende ter uma prática eficaz. Você não pode fazer seus rituais como quem escova os dentes, pensando na morte da bezerra. O segundo elemento é hitlahavut, “fervor, êxtase”. Diferente de outros trechos bíblicos mais tediosos, como nas leis do Êxodo, Levítico e Números (Êxodo 21:33–34 literalmente tem trechos sobre o que fazer se um boi cai num buraco), os salmos apelam para as emoções. Muitos começam numa tentativa de despertar a misericórdia de Deus — vide o famoso versículo “minhas lágrimas têm sido o meu alimento de dia e de noite” no salmo 42:3. Essa conexão emocional é importante e fornece um combustível para o trabalho mágico. Só de conseguir recitar os salmos com foco e intenção, mas friamente, você já deverá conseguir resultados, mas eles serão ampliados se suas palavras tiverem o peso, de fato, daquele que se entrega diante do divino e permite que ele o preencha.

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  1. O artigo da Wikipédia explica melhor esta questão. Aqui eu estou utilizando a numeração hebraica, porque é a que faz sentido com as minhas referências, mas é possível que a outra seja mais correta. Para os propósitos de magia de salmos, eu entendo que, para quem sabe hebraico, é mais poderoso ler as fórmulas em hebraico, mas qualquer língua, latim, grego ou português, já serve. ↩︎
  2. O motivo pelo qual este texto trata de magia de salmos propriamente e não de magia bíblica no geral é por conta de sua consistência e sistematização. Praticamente todos os salmos têm aplicações práticas, então é mais fácil consultar esse tipo de lista do que conferir versículos bíblicos avulsos. ↩︎
  3. O Sexto e Sétimo Livros de Moisés formam um grimório de inspiração cabalística que começou a circular na Alemanha do século XVIII. Apesar de ser atribuído a Moisés e utilizar várias fórmulas em hebraico (em graus variados de corrupção), há vários elementos cristãos também. Este texto se tornou especialmente popular entre os imigrantes holandeses na América. Existe também um Oitavo Livro de Moisés, não relacionado, que faz parte dos Papiros Mágicos Gregos. ↩︎
  4. Não confundir com outros vários livros com este nome. O Enchiridion do Papa Leão III é um grimório francês dos séculos XVI/XVII. Há uma tradução para o inglês feita por Michael Cecchetelli incluída em seu volume Crossed Keys, que acompanha a sua tradução do Dragão Negro, um grimório de magia demoníaca. ↩︎
  5. No caso dos luteranos mais estritos, você provavelmente não vai ter muito sucesso em convencê-los a usar magia, não importa o nome que você dê. Em todos os outros casos, todo mundo, até ateu, aceita uma ajudinha do mundo oculto, mas é importante que se use a terminologia correta, porque cristãos religiosos com frequência têm preconceito com o termo magia ou feitiçaria (isso é sempre o que os outros fazem). ↩︎
  6. Não se trata de uma questão de moralismo, mas de eficácia ritual e energética. Muitos autores vão recomendar períodos mais longos de abstinência sexual, o que inclui masturbação, mas eu acredito que de 1 a 3 dias já é o suficiente para viabilizar o processo. Se nos orientarmos pelo judaísmo, também seria bom evitar esse tipo de magia durante o período menstrual. ↩︎
  7. Alimentos impuros, segundo a kashrut judaica, incluem todo fruto do mar exceto peixes com escamas, carne de porco ou animais mais estranhos. Considerando que camarões e porcos realmente comem qualquer coisa, essa recomendação faz muito sentido. Na Cura Prânica, aliás, é recomendado aos curadores que pretendem desenvolver um trabalho sério na escola que se abstenham desse tipo de alimento também. ↩︎
  8. O que isso tem a ver com o tarô é que os 36 arcanos menores que sobram quando excluímos as cartas de corte e os ases são atribuídos cada um a dois arcanjos do Shemhameforash. Daí o tema do livro do casal. ↩︎
  9. Na verdade eu ainda não estou satisfeito com a escolha do salmo de Gabriel, porque, apesar da tradução, não encontro nele a raiz G-B-R. Quanto ao anjo Raziel, eu retirei a fórmula do livro de Damon Brand, 72 Angels of Magick (apesar de eu normalmente não recomendar o uso das técnicas da escola dele). Na verdade, é um pouco mais complicado do que isso e tem um outro anjo intermediário chamado Arzel, com as mesmas letras de Raziel, invocado nesta fórmula, quando lida em hebraico, que, por sua vez, é chamado para se entrar em contato com Raziel. ↩︎
  10. Os arcanjos têm diferentes facetas. Rafael pode ser chamado como um arcanjo independente ou inserido num esquema elemental ou planetário como o arcanjo do ar ou do planeta Mercúrio. Os autores recomendam que cada faceta seja tratada mais ou menos como uma entidade distinta. Vale lembrar também que pe é a letra de Mercúrio segundo a edição mais padrão do Sefer Yetzirah, mas a versão da Golden Dawn faz a equivalência com a letra bet. ↩︎

2 comentários Adicione o seu

  1. Francisco Carlos disse:

    Boa noite.

    Quanto tempo depois de ter ingerido bebida alcoólica ou carne de porco eu posso rezar Salmos com segurança?

    Grato.

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    1. fraterabstru disse:

      Boa noite, amigo. Então, depende. Talvez eu tenha errado um pouco no tom ao falar que “dá ruim”, porque não é tanto uma questão de segurança, mas de eficácia. Quanto mais vc puder se preparar antes, melhor. Se puder reservar uns 2 dias para ficar mais quietinho e manter uma alimentação mais leve, é melhor.

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