O rei Salomão e a magia

Poucos nomes são tão famosos nas tradições mágicas do mundo ocidental e Oriente Próximo quanto o do rei Salomão. No texto de hoje eu gostaria de traçar um breve panorama histórico da figura, desde a sua presença no material bíblico até o folclore posterior, a fim de poder oferecer um retrato de quem foi Salomão e o porquê de sua importância para a cultura esotérica.

Salomão é um aportuguesamento a partir das transliterações para grego e latim Solomón e Salomon, como consta na Septuaginta e Vulgata. Seu nome em hebraico se diz Shlomo, da mesma raiz shin-lamed-mem que dá a palavra shalom, “paz” – cognato de shalamu em babilônico e salaam em árabe, daí que nesse idioma ele seja conhecido como Sulayman. E, segundo a arqueologia, se existiu mesmo um rei Salomão (o que é bem possível, na verdade), ele foi o governante de um feudo minúsculo no Levante do começo da Idade de Ferro. Com o colapso da Idade de Bronze, os grandes impérios mesopotâmicos, hititas e egípcios se desmantelaram, e nesse vácuo foram surgindo diversos estados menores na região, um deles sendo Israel, um reino muito pouco expressivo no século X a.C. A Salomão são atribuídos os créditos de ter construído o Primeiro Templo em Jerusalém… mas quanto à realidade dessa atribuição os arqueólogos ainda estão em dúvida, dada a proibição das escavações no Monte do Templo e as interpretações conflitantes dos artefatos recuperados.

Quanto ao Templo em si, o que se pode saber é que, em termos de teologia, ainda não havia surgido o monoteísmo estrito pelo qual a tradição abraâmica é conhecida, que acontece no retorno do Exílio da Babilônia (já falamos disso num outro texto aqui). Um termo que os pesquisadores costumam usar para se referir às práticas religiosas do período é monolatria: o louvor a um único deus, o compósito de YHWH/El venerado no antigo Israel, mas sem negar a divindade de outros deuses, cujo culto também seria praticado nesse mesmo espaço. Voltaremos a isso daqui a pouquinho.

A aparição de Salomão na Bíblia como personagem é, na verdade, também muito breve. No final do livro de Samuel nós acompanhamos como o seu pai, o rei David, se engraça com a mulher de um de seus oficiais, chamada Bath-Sheba (ou Bate-Seba), e por talaricar o amigo é castigado com a morte do seu primogênito (Deus não brinca em serviço com os castigos do Antigo Testamento, como bem se sabe). Após esse luto arrasador (e a descrição na Bíblia é, de fato, profundamente dolorosa), David tem um segundo filho: “Então consolou David a Bate-Seba, sua mulher, e entrou a ela, e se deitou com ela, e ela deu à luz um filho, e deu-lhe o nome de Salomão; e o Senhor o amou” (2 Samuel 12:24). Na sequência, no livro de Reis, nós acompanhamos a morte de David e a ascensão de Salomão ao trono.

O rei Salomão, em gravura de Gustave Doré, colorizada

O primeiro episódio marcante que se vê no livro de Reis, em 1 Reis 3, para ser mais exato, é quando Deus fala com Salomão num sonho durante a noite e lhe diz para fazer um pedido. Salomão, então, pede para que Deus ponha em seu coração discernimento (shomeah, em hebraico, da raiz shin-mem-ayin, com o sentido de “escutar, ouvir”, como em shemah) para julgar o seu povo com justiça. E Deus fica muito feliz por Salomão ter lhe pedido sabedoria e não riqueza e honra, por isso ele ganha não só a sabedoria que pediu, como também riqueza e honra, de bônus. E, de fato, segundo as descrições posteriores, o reino de Salomão era riquíssimo e o texto oferece várias descrições de seu luxo e pompa. Na sequência, acontece a cena mais famosa da mitologia salomônica em que ele julga o caso do bebê das duas prostitutas que disputam a maternidade da criança, demonstrando a sagacidade do segundo monarca de Israel.

Em 1 Reis 5, Salomão manda construir o Templo com base na lógica de que, agora que o povo deixou de ser nômade e ele mesmo está estabelecido num palácio, sem inimigos, faz sentido que Deus tenha um lugar só para sua adoração, e o texto bíblico faz uma longa descrição do espaço, como fez quando Moisés manda construir o Tabernáculo (o templo portátil) no livro do Êxodo. Esse é o templo que é destruído no dia 9 do mês Av, após a invasão dos babilônios sob Nabucodonosor II, que leva ao período do Exílio.

Agora, o ponto em que Salomão cai em desgraça é em 1 Reis 11, onde consta que, por conta de seu amor por mulheres estrangeiras, Salomão comete idolatria e se curva diante de ídolos… o que, como vocês vão reparar, é um pouco fora do personagem para uma figura famosa por sua sabedoria. O livro de Reis ainda não trata desses ídolos em termos de demônios, nem estabelece que Salomão teria o poder de comandar espíritos impuros, mas essa leitura vai se insinuar com o tempo na tradição salomônica, aos poucos criando a cena insólita em que o rei se curva diante dos demônios que obedecem a ninguém menos que o próprio Salomão. Mas aqui estou me adiantando, já que ainda não tem nada disso no texto bíblico, apenas a acusação de idolatria, de veneração de um “falso deus” (especificamente, essas divindades seriam Ashtoreth, deusa dos sidônios, Moloch e Chemosh). Por esse motivo, seu reino termina dividido. O que isso significa?

Como expliquei no primeiro texto da série “Lendo a Bíblia”, o antigo Israel na verdade era dois reinos: o reino de Israel propriamente era o reino do norte, com capital em Samaria, ao passo que Judá era o reino do sul, com capital em Jerusalém. É muito provável que historicamente essa união nunca tenha acontecido, mas a versão do texto bíblico é que houve um tempo em que o esse reino foi unificado, tendo sido fundado por David, com a capital em Jerusalém, mas, graças ao pecado de Salomão, com a ascensão do seu herdeiro Rehoboão, Deus repartiu o território em dois. Como alguns estudiosos entendem, é possível que seja o caso clássico de o texto bíblico expor certas tensões ideológicas, servindo como um tipo de propaganda contra o povo do norte. Temos essa ideia de que a monolatria era a norma no Primeiro Templo, por isso é perfeitamente possível que, sob um olhar posterior, pós-exílico e mais rígido, essa tolerância religiosa anterior fosse entendida como idolatria. E, se entrarmos ainda mais fundo, existe ainda a hipótese de que o Salomão bíblico não teria sido baseado em nenhum monarca local, que certamente jamais poderia exibir toda essa magnificência e opulência descritas na Bíblia, haja vista o fato de que Jerusalém era, como dito, um feudo insignificante na época. Segundo Russell Gmirkin, num capítulo de um livro de 2020 publicado na série Library of Hebrew Bible/Old Testament Studies (comentado aqui), o verdadeiro rei Salomão seria o rei assírio Shumanu-asharedu do séc. IX a.C., mais conhecido como Salmanaser III. Não é possível falar com qualquer grau de certeza quando estamos tratando de um assunto tão delicado e elusivo, mas não é uma hipótese implausível.

Estátua de Salmanaser III, no Museu do Iraque, em Bagdad

Em todo caso, Salomão pode representar tanto a apropriação de uma narrativa assíria quanto um tipo de propaganda antimonarquista, que pinta o povo do norte como um bando de idólatras (afinal, se nem mesmo o mais sábio dentre eles não conseguiu evitar cair em idolatria, que esperança resta para o povo comum?). No entanto, não demora muito para que comece a ocorrer a reabilitação da figura de Salomão ainda no período de redação e compilação do texto bíblico. Há três livros dentro do Antigo Testamento cuja autoria é atribuída ao velho rei. São eles Provérbios, Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos.

O livro dos Provérbios é, assim como os Salmos e , parte dos chamados textos poéticos nas divisões judaicas do Antigo Testamento, representando um exemplo israelita de uma tradição mais antiga da literatura do Antigo Oriente Próximo, a literatura sapiencial. O próprio texto se apresenta como “Os provérbios de Salomão, filho de David, rei de Israel”, apesar de a provável data de composição ser muito posterior, remetendo ao período persa ou helenístico. No entanto, são marcantes os paralelos com o material que se encontra no Egito e na Mesopotâmia. E aí temos o Eclesiastes… o nome do livro em português (não confundir com Eclesiástico, que é um outro livro que não faz parte do cânone judaico) vem do grego Ekklesiastes, de ekklesia, que significa “assembleia” (que é a etimologia também de “igreja”), traduzindo o nome em hebraico original, Qohelet, literalmente “aquele que reúne” ou “pregador”. Nesse caso, temos mais uma obra de literatura sapiencial, agora possivelmente influenciada não apenas pela tradição do Antigo Oriente Próximo como também por algo do pensamento grego (embora aí a uma questão seja um pouco mais polêmica). A identificação de Salomão aqui deriva do versículo que afirma que o autor do livro, que permanece anônimo, foi “rei de Israel em Jerusalém”… o que significa que só poderia ser Salomão, porque o próximo rei de Israel governaria a partir de Samaria, não Jerusalém, capital de Judá. Para quem tiver interesse em literatura sapiencial, os textos do volume Wisdom Literature in Mesopotamia and Israel, editado por Richard Clifford, são um bom lugar para começar a estudar o assunto.

Já o Cântico dos Cânticos é um poema erótico, um tipo de epitalâmio em forma dramática, celebrando a chegada de uma nova esposa ao harém de Salomão (que contava com o número absurdo de 700 esposas e 300 concubinas). Por conta do teor desses versos, sua interpretação religiosa mais comum é que se trata de uma expressão do amor (não carnal) entre o deus de Israel e o povo, uma metáfora já bem atestada na literatura bíblica (vide os livros de Oseias e Ezequiel, por exemplo). Dados alguns poemas sumérios que sobreviveram, inclusive com diálogos eróticos entre Inana e Dumuzid, é muito possível que seja mais um caso de uma continuidade entre as tradições israelita e mesopotâmica. Em termos de datas, porém, aqui temos um caso mais marcadamente tardio, por conta da presença de elementos linguísticos como a palavra pardes, “pomar, jardim, paraíso”, cognata do grego paradeiso, de origem indo-europeia, o que aponta para o contato com persas ou gregos.

(E, para quem tem interesse nesse material a partir de uma perspectiva literária, tanto o Cântico dos Cânticos quanto Eclesiastes contam com traduções poéticas belíssimas da parte de Haroldo de Campos, nos volumes Éden: um Tríptico Bíblico e Qohélet: O-que-Sabe. Recomendo demais.)

A visita da rainha de Sabá ao Rei Salomão (1890), pintura de Sir Edward John Poynter.

Aqui observamos o começo da transformação da figura de Salomão ainda dentro do cânone bíblico (apesar que esses três livros escaparam por muito pouco de não serem canonizados, curiosamente, sendo salvos por conta de sua atribuição de autoria). Quem acompanha a trajetória de como o antigo rei era visto pelos próprios israelitas é o autor Pablo Torijano, em seu Solomon the Esoteric King: from King to Magus, the Development of a Tradition. Como Torijano comenta, o detalhe vergonhoso do pecado de Salomão aos poucos fica em segundo plano e vai sendo enfatizada sua sabedoria, em vez disso, que passa a abranger todos os aspectos da palavra, desde o domínio de saberes práticos e orientações gerais sobre como viver até os mais esotéricos. O livro deuterocanônico conhecido como Sabedoria de Salomão, escrito por um autor de origem judaica, porém no idioma grego, no século I a.C., representa um exemplo dessa caracterização. Nele se lê:

“Que Deus me permita falar como eu quisera, e ter pensamentos dignos dos dons que recebi, porque é ele mesmo quem guia a sabedoria e emenda os sábios, porque nós estamos nas suas mãos, nós e nossos discursos, toda a nossa inteligência e nossa habilidade; foi ele quem me deu a verdadeira ciência de todas as coisas, quem me fez conhecer a constituição do mundo e as virtudes dos elementos, o começo, o fim e o meio dos tempos, a sucessão dos solstícios e as mutações das estações, os ciclos do ano e as posições dos astros, a natureza dos animais e os instintos dos brutos, os poderes dos espíritos e os pensamentos dos homens, a variedade das plantas e as propriedades das raízes. Tudo que está escondido e tudo que está aparente eu conheço: porque foi a sabedoria, criadora de todas as coisas, que mo ensinou” (Sabedoria de Salomão, 7:15-21)

Aqui já estamos além dos limites da sabedoria prática do dia a dia, adentrando o domínio do hermetismo (de fato, Torijano aqui usa o termo “sábio hermético” para caracterizá-lo). Os poderes dos espíritos, as posições dos astros e as propriedades de plantas e raízes… tudo isso se encaixa perfeitamente com a literatura hermética que começa a surgir do período helenístico em diante e representa uma nova camada no imaginário em torno dessa figura bíblica.

Ao mesmo tempo, também começava a emergir a ideia consoante de que Salomão seria, além de tudo, um poderoso exorcista. Quando se fala em exorcismo, geralmente as pessoas pensam no rito romano da Igreja Católica… no entanto, mais uma vez, trata-se de uma prática com um longo histórico no Antigo Oriente Próximo, onde se entendia que diversos tipos de doenças e transtornos físicos e mentais eram causados por espíritos malignos. No próprio texto bíblico mesmo, há um episódio em que Deus manda um espírito ruim para atormentar Saul… e quem acaba expulsando-o é ninguém menos que David, por meio de sua música. Aparentemente, Salomão herda do seu pai esse talento para o exorcismo, pois, como consta na obra do historiador Flávio Josefo:

“Deus também lhe permitiu aprender a habilidade de expulsar demônios, que é uma ciência útil e sanatória para os homens. Ele compôs encantamentos tais por meio dos quais é possível aliviar os destemperos. E nos legou o modo de fazer uso dos exorcismos, por meio dos quais eles afastam demônios, que nunca retornam; e esse método de cura é de grande força até hoje, pois já vi um certo homem em minha própria terra, cujo nome era Eleazar, libertar as pessoas que estavam possuídas na presença de Vespasiano e seus filhos, capitães e toda a multidão de seus soldados. O modo da cura era o seguinte: Ele levou um anel contendo uma raiz de um daqueles tipos mencionados por Salomão até as narinas do possuído, puxando o demônio por meio das suas narinas, e quando o homem caiu imediatamente ele o abjurou para que não lhe retornasse mais, fazendo menção a Salomão e recitando o encantamento que ele compôs.” (Antiguidades dos Judeus, livro 8, seção 42).

A obra de Josefo talvez não seja exatamente representantiva do pensamento judaico de modo geral, pois Josefo foi um autor judeu que escreveu para um público grego e romano e, por isso, muitas vezes oferece uma caracterização da história judaica que apela para o gosto do seu público. No entanto, essa visão de Salomão como exorcista encontra uma outra confirmação nos famosos Manuscritos do Mar Morto, mais especificamente o rolo 11QPsApª. Todo mundo já ouviu a SenseMárcia mandar usar o salmo 66 para “expulsar os capetas de casa”, mas historicamente, na verdade, o salmo de exorcismo por excelência é o 91, como consta nesse manuscrito. E, junto com o salmo, temos nesse rolo bastante fragmentado uma menção clara a Salomão e ao modo como ele “invoca o nome de YHWH com o propósito de livramento contra qualquer peste dos espíritos e demônios e liliths, corujas e chacais”.

Por fim, para encerrarmos esta parte do texto, é interessante apontar que a presença de Salomão não está restrita apenas ao material judaico, mas consta também em alguns pontos dos Papiros Mágicos Gregos – o que não deve ser grande surpresa, considerando o caráter sincrético desse material. Nas linhas 850-929 do 4º livro dos PGM, consta um “Encantamento de Salomão que produz um transe” e num outro ritual posterior (PGM XCII. 1-16), consta a seguinte fórmula, em que o conjurador se volta aos poderes divinos a fim de pedir e atrair certas qualidades para si: “Todos temem teu grande poder. Concede-me coisas boas: a força de AKRYSKYLOS, a fala de EUŌNOS, a visão de Salomão, a voz de ABRASAX, a graça de ADŌNIOS, o deus.”

Não deixa de ser interessante podermos observar como a caracterização de Salomão foi evoluindo ao longo dos séculos. Assim, quando chegamos no comecinho da era cristã, parece estar bem consolidada a sua imagem não apenas como o monarca de um reino riquíssimo, mas também sábio, mago e exorcista, de modo que os desenvolvimentos posteriores a partir daí parecem naturais.

Com a ascensão do judaísmo rabínico, após a queda do Segundo Templo em 70 d.C. (que se dá na mesma data do calendário judaico que a queda do Primeiro, o dia 9 de Av), começa o período de redação e compilação do material que virá a ser conhecido como o Talmude, e aí constam mais algumas histórias e detalhes interessantes. Algumas das histórias mais famosas dizem respeito às interações entre Salomão e o demônio Asmodeus, como se lê no tratado Gittin 68a. A narrativa pode ser lida em inglês no site Sefaria e é um pouco tortuosa, mas o resumo é o seguinte: como consta na Bíblia, o Templo precisará ser construído sem o uso de ferramentas de ferro, nem machados, nem martelos… o que vocês devem imaginar que é um pouquinho difícil, considerando que é preciso quebrar pedras para isso.

A solução é apresentada na forma de uma criatura chamada shamir, um vermezinho capaz de partir pedras (feito um Pokémon). Para encontrar o shamir, Salomão tortura um casal de demônios (o termo em hebraico/aramaico é sheid, cognato dos shedu babilônicos), que afirmam que quem deve saber isso é Asmodeus ou Ashmedai, que pode ter suas origens numa entidade de origem persa, um espírito de fúria chamado Aeshma Deva, o antagonista de outro livro deuterocanônico, o livro de Tobias/Tobit. O casal então explica como chegar até ele e, após uma série de artimanhas meio Looney Toones, Salomão basicamente embebeda Asmodeus com vinho e utiliza uma corrente com o nome de Deus para prendê-lo. E com a colaboração (forçada) de Asmodeus, Salomão descobre como fazer para encontrar o shamir, mas mantém a companhia do demônio até completar a construção do Templo.

Um outro elemento aí, em consonância com a narrativa de Josefo, é um anel mágico contendo uma gravação do nome de Deus, que serve para proteger Salomão e comandar a obediência dos demônios. Como consta na Jewish Encyclopedia, quem elaborou melhor o conceito posteriormente foram os autores árabes, que popularizaram o conceito do selo de Salomão (Khatam Sulayman), um anel de sinete com o símbolo do hexagrama (mais conhecido, mais tarde, como Estrela de David ou Magen David, escudo de David). Os chamados sete símbolos, que já vimos num texto anterior aqui sobre talismãs, também aparecem associados ao nome de Salomão.

“O pescador e o gênio”, arte de Edmund Dulac, inspirado na história das 1001 noites em que um pescador encontra no mar um djinn que havia sido aprisionado por Salomão em uma garrafa séculos antes.

Na segunda metade dessa história, Asmodeus passa a perna em Salomão para que ele entregue o seu anel mágico a fim de demonstrar o poder dos demônios. Indefeso, Salomão é arremessado a uma distância de 400 parasangas (mais ou menos 2400 km) e precisa seguir o caminho de volta para Jerusalém como um andarilho. Ao voltar para casa, ele descobre que o demônio está se passando por ele. O povo a princípio duvida de Salomão, mas o comportamento do rei de fato andava muito estranho: não era possível ver seu pé, pois ele sempre usava meias (demônios teriam pés de galo, o que permitiria identificá-lo); e ele insistia em transar com as suas mulheres apenas quando estivessem menstruadas – e, pior ainda, ele exige transar até mesmo com a própria mãe, Bate-Seba. Nada como uma sugestão de incesto para dar uma apimentada numa narrativa.

No fim, Salomão consegue recuperar suas ferramentas mágicas e o trono, expulsando Asmodeus (na versão árabe, o anel é reencontrado antes de seu retorno, dentro da barriga de um peixe, depois de Asmodeus cuspi-lo no mar). Trata-se de uma história das mais interessantes, ainda que a narrativa talmúdica seja um pouco esquisita para quem não está acostumado com o seu estilo. Um artigo de Reuven Kiperwasser, numa edição de 2021 da Jewish Quarterly Review (explicado neste texto), comenta que isso pode ser pelo fato de que se trata de três narrativas diferentes costuradas numa só – cada uma com uma visão cultural específica de como são os demônios. Na cultura persa, demônios podem ser perigosos, mas também úteis e amigáveis (assim como os djinn dos árabes), ao passo que, para a cultura cristã bizantina, demônios são sempre agressivos e perversos. As duas perspectivas aparecem nesse conto: primeiro Asmodeus é caracterizado como um espírito que, todos os dias, sobe aos céus para estudar no salão de estudos celestial e depois desce à terra para estudar no salão de estudos terreno – sim, até os demônios estudam a Torá, nessa visão. Depois, na segunda metade, ele é uma figura agressiva e sexualmente perversa. E a história do verme shamir permite conciliar essa presença demoníaca na construção do Templo (que já devia fazer parte do folclore) sem que os demônios estivessem envolvidos de fato no processo – Asmodeus apenas indica como achar o shamir, em vez de botar a mão na massa de fato.

A versão segundo a qual o Primeiro Templo é construído diretamente por mãos demoníacas – inclusive detalhando as funções de cada espírito maligno nesse trabalho, entre quebrar pedras, cavar a terra e buscar água – consta num texto apócrifo do começo da era cristã chamado de Testamento de Salomão. Já fizemos uma breve menção a esse material num momento anterior aqui d’O Zigurate: trata-se de uma narrativa simples, segundo a qual Salomão captura um demônio chamado Ornias, que atormentava um dos construtores do Templo. Demônios são não seres lá muito unidos, pelo visto, por isso Ornias, na sequência, vai entregando seus colegas infernais um por um, e eles vão se apresentando a Salomão, explicando sua origem (alguns, como Belzebu, são anjos caídos, mas a maioria são apenas os filhos de anjos caídos), sua moradia, os males que eles causam e o anjo ou fórmula mágica capaz de expulsá-los. O que tem de fascinante no Testamento de Salomão é sua tripla função, como narrativa parabíblica, catálogo demoníaco e manual mágico, que praticamente inaugura o que viria a ser a tradição salomônica. Para saber mais sobre esse livro, eu recomendo demais o vídeo do Dr. Justin Sledge no seu canal Esoterica).

Nas tradições mágicas judaicas, é curioso que Salomão não tem a mesma presença que ele viria a ter no mundo cristão. Como já vimos, o Livro do Anjo Raziel se apresenta como tendo sido entregue a Adão e Eva; o Livro dos Mistérios a Noé; e a Espada de Moisés, outro manual de magia judaica do começo da era cristã, é atribuído a Moisés, obviamente. A tarefa de rastrear o caminho que levou à formação da tradição salomônica é árdua, no entanto, e entre essas raízes bem documentadas e os grimórios famosos do princípio da era moderna, como o Lemegeton, observa-se um grande apagão. Além do Testamento, outra obra importante é a Hygromanteia, da qual já tratamos aqui, onde também aparecem os lugares-comuns de como Salomão dominava demônios, com o auxílio de anjos e toda uma parafernália mágica, mas o bônus de um elemento de magia astrológica. Só que esse grimório também tem uma história tortuosa e uma ampla gama de manuscritos com muita variação entre si.

Para um autor como Jake Stratton Kent, as raízes dessa tradição seriam na verdade algum tipo de prática semelhante ao xamanismo no mundo greco-egípcio – a palavra goetia, afinal, vem do grego goes, que significa feiticeiro, mas também um tipo de cantor fúnebre, ligado ao verbo goao, “gemer, lamentar” – por meio da qual era estabelecido contato com entidades ctônicas. Num breve episódio do podcast Glitch Bottle, Alexander Eth comenta, inclusive, que um tipo de entidade descrita pelo filósofo neoplatônico Jâmblico exibe características muito semelhantes com os demônios da tradição salomônica. No entanto, dentro de um contexto cristão, essas entidades ctônicas – compreendidas num material como os PGM como seres potencialmente perigosos, mas não necessariamente malignos – passaram a ser compreendidas como seres infernais e anjos caídos, obedientes a Lúcifer, que é a perspectiva cristã (e não judaica) sobre essas figuras que se convencionou chamar de demônios, readaptando o termo grego daimon, mais vago. Nesse contexto, é muito possível que a capacidade lendária de Salomão em dominar demônios (ainda que nem os demônios da tradição judaica, nem os djinns da tradição árabe tenham essa conotação infernal) e colocá-los para trabalhar em coisas mais produtivas tenha sido bem útil para servir de fio condutor. E não se deve excluir ainda a influência da literatura esotérica árabe, que foi chegando à Europa no final do medievo. Um exemplo dessa influência se observa nos reis demoníacos das quatro direções: na tradição dos grimórios europeus, Maymon ou Amaymon é o rei da direção sul, que não é ninguém menos que o djinn Maymun, rei de Saturno.

(Para quem tem interesse no desenvolvimento da tradição salomônica, obras como a Geosophia, de Kent, e praticamente toda a bibliografia do Dr. Stephen Skinner são leitura obrigatória, claro)

Por fim, eu não poderia escrever um texto sobre o rei Salomão sem mencionar o grimório mais famoso do mundo que é a Chave de Salomão. Na verdade, os “livros” conhecidos por esse nome são “dois”, por assim dizer (muitas aspas, porque há uma variedade de manuscritos, o que gera alguma confusão). O primeiro é um grimório chamado Clavicula Salomonis, que foi traduzido para o inglês por Mathers em 1888 sob o título The Key of Solomon the King (tendo como referência os manuscritos Add. MSS., 10862; Sloane MSS., 1307 & 3091; Harleian MSS., 3981; King’s MSS., 288; Lansdowne MSS., 1202 & 1203), uma obra razoavelmente benigna que ensina uma série de conjurações e técnicas de purificação e construção de ferramentas mágicas, incluindo os famosos pantáculos dos 7 planetas. Apesar de evidentemente cristão, uma versão italiana desse grimório serviu de base para uma tradução hebraica sob o título Sefer Mafteah Shlomo no século XVII/XVIII – um exemplo marcante do efeito pizza no mundo esotérico.

O outro grimório, com maior apelo sensacionalista, é que em inglês chamam de Lesser Key of Solomon, Clavicula Salomonis Regis ou Lemegeton, um voluminho do século XVII composto por 5 livros menores, a saber, a Ars Goetia, Ars Theurgia-Goetia, Ars Paulina, Ars Almadel e Ars Notoria (o Dr. Justin Sledge já tratou também de alguns desses livros em seu canal Esoterica, como se pode ver nos links). Dentre eles, a Ars Goetia é o que trata do trabalho com os famosos 72 demônios, contendo o catálogo com os poderes, descrições e o sigilo usado para conjurar cada um deles, bem como as instruções a serem seguidas, com as fórmulas a serem recitadas e a construção das ferramentas, incluindo um vaso de bronze para aprisionar os espíritos. Uma tradução para o inglês, de autoria da dupla dinâmica Crowley-Mathers, saiu em 1904 sob o título The Book of the Goetia of Solomon the King. Apesar de sua popularidade, o livro faz uma grande mistura e sua metodologia inclui inovações como o uso de rituais como o Bornless Ritual e fórmulas em enoquiano (um outro sistema mágico à parte), por isso não é preferido pelos praticantes mais puristas. As edições de Joseph Peterson e, de novo, Stephen Skinner, são preferíveis nesse sentido.

O vaso de bronze, na edição da Goetia de Peterson.

Eu não vou tratar da imensa bagunça que é o histórico textual da Ars Goetia. Há uma imensa variedade de manuscritos que servem de referência, incluindo o Heptameron, atribuído a Pietro d’Abano, e a Pseudomonarchia Daemonum, incluído no apêndice da reedição de 1563 de De Praestigis Daemonum, de Johann Weyer, onde consta uma lista desses 72 demônios que é quase idêntica à da Goetia (além de muitos outros livros à parte que partilham de material em comum, pelo menos em parte). A Pseudomonarchia Daemonum é traduzida do latim para o inglês por Reginald Scot em The Discoverie of Witchcraft… um livro de 1584 que, ironicamente, tinha como propósito expor a magia como charlatanismo e a caça às bruxas como uma coisa irracional. Como comenta Peterson na sua introdução, “A Goetia parece, na verdade, ser dependente de Scot, fielmente copiando seus frequentes erros de tradução, elaborações e omissões”.

Por fim, vale apontar para uma questão que diversos comentadores tendem a deixar de lado que é um elemento de antissemitismo presente nesse material. Um jovem chamado Ezra Rose recentemente publicou um e-zine intitulado A Lesser Key to the Appropriation of Jewish Magic & Mysticism (link aqui), que dedica um breve capítulo à magia salomônica. Como Rose aponta, citando Trachtenberg e Owen Davies, a ascensão desses grimórios coincide com um novo ânimo na demonização dos judeus da Europa. Como se sabe, mesmo os europeus mais bem-intencionados do começo da idade moderna (em oposição ao pessoal que mandou milhares de judeus para a fogueira durante o medievo) pretendiam dominar as práticas do misticismo judaico a fim de vencer os judeus em seu próprio jogo, recorrendo à Cabala para “provar” a realidade de Jesus como o Messias. E embora ninguém que tenha um mínimo de noção hoje possa sequer pensar que um livro como a Ars Goetia teria sido escrito por um judeu, durante muito tempo essa ilusão se manteve. Diferente do que aconteceu no mundo islâmico medieval, igualmente fascinado pela figura de Salomão, mas disposto a defendê-lo até mesmo das acusações de feitiçaria e idolatria, os europeus associaram Salomão à necromancia e magia maléfica – uma associação que se estende, por consequência, a todos os judeus. Como comenta Rose, “a disseminação de literatura mágica antissemita teve um efeito destrutivo sobre os livros judaicos reais. Exemplares do Talmude e outros textos sagrados foram queimados aos milhares durante a Inquisição, para evitar que os conversos praticassem o judaísmo em segredo, mas também por conta do que era visto como seu perigo mágico”.

Eu pessoalmente (e enquanto descendente de judeus, ainda que não seja um judeu de verdade) não sei muito bem o que fazer com isso, porque há muitas variáveis envolvidas. Por um lado, não se pode dizer que não existe mais antissemitismo na cena esotérica de hoje – vide o tanto de nazista e consparacionista do Q-Anon que emerge nos esgotos das redes sociais – e certamente há quem associe o rei Salomão e os judeus no geral à magia demoníaca. Por outro lado, até onde eu lembro (e, bem, posso estar enganado), nenhum desses textos é explicitamente antissemita, apesar de surgirem e contribuírem para contextos de antissemitismo. Ao mesmo tempo, a história desses textos é tão bizarra, conturbada e cheia de erros que é um milagre que um sistema construído a partir disso funcione – ainda que seja um sistema famosamente perigoso. Para a Josephine McCarthy (que comenta a prática na lição 2, “Demonic Beings in Magical Work”, do Módulo 6 para Iniciados da Quareia), o perigo desse sistema deriva do fato de que nenhuma dessas entidades é um demônio real, mas sim meros parasitas… o que faz sentido, ao mesmo tempo em que eu acho difícil descartar a experiência real de pessoas que se engajaram com isso e tiraram disso algo muito mais produtivo do que um trabalho com um carrapatão espiritual. No mais, e é possível ainda trabalhar com esses mesmos espíritos a partir de outras perspectivas, como demonstra Jason Miller em seu Consorting with Spirits, onde apresenta como seriam as conjurações goéticas quando se toma como ponto de partida o luciferianismo e o trabalho com a deusa Hécate, o que dispensa o cosplay de judeu e o uso de fórmulas em hebraico macarrônico. O assunto é complicado e eu não acredito que seja possível chegar a uma resposta simples – nem é esse o objetivo deste texto.

Em todo caso, para encerrar eu reitero o quanto eu acho fascinante observar a transformação de uma figura como o rei Salomão. Rei, sábio, idólatra, mulherengo, mago, exorcista e domador de demônios – ao contrário do que se pode imaginar, ele não surgiu desde o princípio com todas essas características, mas foi acumulando camadas de caracterização ao longo dos séculos, num jogo constante de condenação (por ter cometido idolatria) e reabilitação (por sua sabedoria e conhecimento) jogado entre as culturas judaica, islâmica e cristã.

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