Como desenvolver sua autoridade espiritual?

O conceito de autoridade espiritual é um dos favoritos do jargão ocultista, e não é à toa. Para resumirmos em termos simples, a autoridade espiritual é o quanto os espíritos levam a gente a sério. Vocês podem imaginar o nível da importância disso numa tradição como a magia cerimonial clássica, que explicitamente fala em comandar espíritos. Muita gente descobriu na prática o que o conceito significa ao conjurar um demônio e vê-lo rir da sua cara quando você tenta dispensá-lo.

Vou começar este texto problematizando. Nesse contexto mais tradicional (e aqui eu penso na tradição salomônica de modo geral, mas é algo que se observa desde os PGM), a tendência é à coerção – você manda nos espíritos, que são geralmente ctônicos ou abissais, e inclusive recorre a ameaças, se necessário1. E o pior é que muitas vezes são ameaças vazias, bom frisar, que você não vai ter como cumprir (convenhamos que o praticante médio de Goetia não tem o poder para lançar nenhum espírito ao inferno), mas que o roteiro demanda que você diga lá com uma expressão séria no rosto… enquanto usa uma coroa do Burger King2.

Referência de millennial velho, eu sei.

Mas o motivo de eu não gostar muito do termo “autoridade” é porque remete, para mim, às autoridades mundanas, como polícia, juiz, esse tipo de coisa (e também me faz lembrar do Eric Cartman de South Park, mas isso talvez seja problema mental meu). Você chama o espírito, ele te manda à merda e você manda prender por desacato, ameaça chamar o gerente, essas coisas. Não sei, não me é lá grande inspiração. Ou então temos a falácia do apelo à autoridade, que é a ideia de que, por alguém ter se estabelecido no seu ramo, tudo que ela diz é impecável, como se ela fosse incapaz de falar merda só por ter virado um grande nome. A autoridade mundana parece que sempre deriva de algo externo, um distintivo, uma farda, uma toga ou mesmo uma narrativa, uma história do passado, algo simbólico de um cargo que, por acaso, é ocupado por um indivíduo, mas poderia ser qualquer outro – ao passo que o assunto deste texto é mais algo que vai fazer parte de quem você é. Nada de passar a conversa no espírito, nem dar carteirada, mas realmente tornar-se uma figura que os espíritos vão olhar com reverência.

Por esses motivos, eu pessoalmente prefiro pensar em termos de uma soberania espiritual, que eu acho que soa mais adequado… talvez alguém possa protestar que isso seria trocar seis por meia dúzia e, bem, também não adianta muito eu usar termos que só fazem sentido na minha cabeça, né? Assim, vamos ficar com o termo “autoridade espiritual” mesmo, já que é mais inteligível. Mas fica aí a minha ressalva.

Me perguntaram outro dia como se faz para adquirir isso. A primeira coisa que é bom a gente ter em mente é que a soberania/autoridade espiritual não é binária, mas um espectro. Não é algo que você tenha ou não, e ponto. Eu lembro sempre do caso de uma amiga que arranjou briga com um influencer famoso de ocultismo (extremamente desonesto, bom frisar), e ele tentou atacá-la enchendo a casa dela de elementaizinhos. Via de regra, elementais são seres muito simples (ainda mais nesse caso, que ela descreveu como um pequeno exército de serezinhos minúsculos), mas era o que ele tinha autoridade para comandar… e ainda fez isso de um jeito tosquíssimo, explorando os pobres coitados.

Como que a gente amplia, então, a nossa autoridade? A resposta provavelmente vai variar de ocultista para ocultista, mas a minha opinião é que a soberania/autoridade espiritual verdadeira deriva de três componentes que devem ser trabalhados ao mesmo tempo e que se relacionam entre si.

O primeiro é o desenvolvimento espiritual, o que não é um conceito fácil de explicar, mas vou tentar resumir (uma tarefa que estou tentando fazer desde que criei O Zigurate). Há um elemento comum nas tradições que me inspiram, que é um conceito do Divino como uma força ao mesmo tempo transcendente e imanente, que permeia toda a realidade e que é a base de tudo que existe. Quando trabalhamos a nossa espiritualidade, a tendência é que a gente se aproxime do Divino – mesmo que sejam apenas uns passinhos de formiga na grande escala das coisas, isso já é muito na escala humana. É o que chamamos de teurgia. Segundo o Corpus Hermeticum, Deus “é aquilo que não subsiste na forma de qualquer uma dessas coisas, pois é a causa do seu ser, para toda e cada uma dessas coisas que existem. (…) Deus não é a mente, mas é a causa do ser da mente; ele não é espírito, mas a causa do ser do espírito; e ele não é luz, mas a causa do ser da luz” (CH II). Deus, ou o Divino, que é o termo que eu prefiro usar porque acho que soa mais neutro, “é energia e poder, cerca todas as coisas e permeia todas a coisas” (CH XII). Essa caracterização do Divino como uma força transcendente e imanente, que permeia o cosmos, também vai aparecer em textos tântricos e cabalísticos3.

Em termos dos centros energéticos em nosso corpo sutil, os chamados chakras, esse trabalho é mensurável pelo estado do seu chakra da coroa, localizado no topo da sua cabeça. Uma coroa forte, saudável e limpa indica uma boa relação com o Divino4, o que geralmente se traduz em uma atitude compassiva, paz de espírito, clareza quanto ao seu propósito na vida e uma capacidade de sentir conexão com o todo. O oposto disso é uma sensação existencial de isolamento, de ser vítima do universo, estar perdido e ressentido com o mundo, o que acompanha uma necessidade de entorpecimento mental (por vários meios) para não ter que lidar com essa sensação ambígua de medo e desejo de morrer. Pesei o clima, né? Mas é isso mesmo… apesar que, claro, entre um extremo e o outro, entre o mestre iluminado e o completo fodido, há todo um espectro, e o processo para avançar no caminho não é linear. Para quem quiser entender isso mais a fundo de uma forma acessível, recomendo sempre a obra do Mestre Choa Kok Sui.

Segundo o entendimento do Mestre Choa e da Cura Prânica, por meio dessa conexão com o Divino, a tendência é que a gente puxe essa energia divina dos planos superiores, o que nos dá força para fazer seja lá o que é para a gente fazer aqui, junto com uma série de benefícios. Essa ideia também combina com o que o Echols afirma em Angels and Archangels, sob o nome de “sustento espiritual”, que ele deriva, nesse livro, do trabalho de magia angelical: “Um benefício a mais de se obter sustento espiritual é que ele tem também efeitos profundos sobre nossa experiência no plano físico: nós nos sentimos mais leves, mais felizes e mais contentes; também passamos a nos importar menos com coisas que, no fim das contas, não importam (redes sociais, dramas de relacionamentos, etc.)”.

E, já que falamos em energia, aí entra o outro componente da autoridade espiritual que é o fortalecimento do corpo energético. Isso foi mais uma coisa que eu aprendi com a Cura Prânica e que fez muita diferença para mim. Nossos corpos sutis são como o corpo físico e, com os devidos exercícios, é possível ficar monstrão. Um método para isso é recorrer a exercícios energéticos, dos quais o mais famoso no ocidente seria o Pilar Médio e suas variantes. Como se pode ver, esse tipo de trabalho no geral envolve visualizações focalizadas nesses centros energéticos, que são trabalhados por meio de fórmulas mântricas. Nem todo ritual de fortalecimento dos corpos energéticos necessariamente precisa seguir esse roteiro, ele pode ser fortalecido por outros meios, mas quando a gente vê uma prática que segue por essas linhas é um sinal óbvio de que é isso que ela faz. O Echols em seu primeiro livro, High Magick, também fala dessas técnicas e oferece orientações nesse sentido.

Como vocês podem imaginar, a força do nosso corpo energético não é visível para nós, mas é para os espíritos. E, quanto mais a gente se fortalece, mais energia a gente consegue absorver e projetar… inclusive a energia divina, e mais você consegue se aproximar da fonte sem fritar o seu sistema.

Arte de Wojtek Siudmak.

O último componente (e talvez a base de tudo) é o refinamento do caráter. Todos nós temos fraquezas, faz parte da experiência de ser humano. Às vezes a nossa fraqueza é o dinheiro: tem gente que não sabe lidar com dinheiro, gente que topa tudo para lucrar, inclusive coisas horrorosas, ou que é muito mão de vaca ou que não consegue guardar nada, porque gasta imediatamente cada real que cai na conta. Às vezes a nossa fraqueza pode ser um vício ou uma compulsão, ou um sentimento como a raiva e até mesmo a autopiedade.

O que essas fraquezas têm em comum (e o que as define como fraquezas) é que elas nos levam a comportamentos destrutivos. Tem aquele meme que diz “meu pau me levou a lugares onde eu não iria nem armado”, e é mais ou menos essa a ideia.

É tentador associar essas fraquezas a conceitos como os “pecados capitais” do cristianismo, mas eu não acho que seja por aí também: não é que essas fraquezas sejam abomináveis para Deus, nem nada do tipo, até porque mesmo o que poderia ser uma qualidade desejável se torna problemática quando desmesurada. É um ideal cristão a pessoa ser boa e gostar de ajudar os outros ao ponto do autossacrifício, por exemplo, mas isso pode fazer com que ela seja explorada, ou então ela pode fazer isso esperando reconhecimento pelo seu sofrimento (a famosa síndrome de mártir).

A introspecção é um elemento importante do processo de refinamento do caráter, portanto, a fim de que a gente seja capaz de entender quais são nossos pontos fracos e quais as estratégias a que podemos recorrer para mitigá-los. Isso já é útil num contexto mundano, mas é ainda mais quando mexemos com magia, porque temos em nossas fraquezas uma brecha para influências destrutivas tentarem nos manipular. No mais, com o desenvolvimento do corpo energético, uma maior quantidade de energia passa pelo nosso sistema, e a energia é como fertilizante. Usar o fertilizante sem antes tirar as ervas daninhas vai fazer crescer as ervas daninhas também… e é muito fácil um magista se perder porque investiu no seu crescimento sem fazer esse cultivo interior primeiro e assim acabou magnificando suas tendências destrutivas.

De novo, essas coisas aparecem em escolas diversas. Na Cura Prânica, há uma forte ênfase em limpeza e purificação no geral, de modo que você possa derivar de cada chakra as suas qualidades equilibradas e positivas, e tudo isso é norteado pelo conceito das Cinco Virtudes sobre o qual toda a escola se baseia (o Mestre fala disso no livro básico, Ciência da Cura Prânica). No sistema do Bardon, já no Grau I do Magia Prática você é levado a fazer uma avaliação das suas qualidades a fim de buscar reconhecer e corrigir os pontos fracos, associando-os aos quatro elementos clássicos. A relação entre caráter e elementos também é observada na Golden Dawn, que utiliza a ascensão pelas sefiroth da Árvore da Vida como um mapa para entender o desenvolvimento do adepto, e espera-se que ele já tenha resolvido a sua alquimia interna antes de chegar a Tiffereth. No hermetismo clássico, o mapa são as sete esferas planetárias, e o Corpus Hermeticum já no Poemandro comenta as características negativas de cada uma que o adepto é capaz de superar ao passar por cada esfera5.

Na prática, há muitas técnicas para o refinamento do caráter, mas todo o processo começa invariavelmente com a introspecção, a autorreflexão, a tomada de consciência. Afinal, não tem como tratar daquilo que a gente não sabe que está lá.

Por fim, como todos os três componentes interagem, o refinamento do caráter vai ficando mais fácil conforme a gente desenvolve o nosso contato com o Divino. Quanto mais distante do Divino, mais a gente fica apegado a tudo da matéria, inclusive aos nossos vícios. Mas esse desenvolvimento facilita o processo, que possibilita, por sua vez, o fortalecimento saudável do corpo energético, que aumenta nossa capacidade de receber a energia divina. E assim por diante.

E como é possível coordenar todas essas coisas? Por meio de uma prática de rotina, é claro (mais uma vez está aqui o link sobre como fazer isso)6. Sim, estou insistindo nisso de novo, porque, na espiritualidade, nada é um evento, tudo é um processo. Se você quer mudar a sua energia (e a aquisição de autoridade/soberania espiritual é uma mudança de energia), é necessário empenho, constância e atenção. Não existe um único ritual que você vai fazer uma vez e pronto, resolveu. Nem na magia existem soluções mágicas.

Traje cabalista no museu de Viena (link). Claramente soma bônus de +5 em todas as rolagens de ataque mágico.

OK, para não dizer que não tem outra saída além de anos de trabalho árduo, existem sim formas, digamos, mais externas de ampliar sua autoridade. Alguns desses recursos são truques dos quais o iniciante pode lançar mão para alcançar um patamar que ele normalmente não alcançaria, por exemplo, ou coisas que vão impulsionar o praticante experiente a um nível além, mas nada substitui esse trabalho constante.

Vou listar alguns desses recursos:

  • rituais que ampliam a sua autoridade temporariamente. O exemplo mais famoso é o célebre “Bornless Ritual” (ou Headless Ritual ou Ritual do Aképhalos) que o Crowley incluiu como ritual preliminar na sua abordagem peculiar às evocações da Ars Goetia, na edição que ele e Mathers publicaram do grimório em 1904. Faz muito sentido, porque esse ritual originalmente dos PGM, era um ritual de exorcismo, e a Goetia pressupõe que o operador já seja um exorcista experiente.
  • Ferramentas mágicas são úteis para isso também – e temos um texto antigo do site aqui sobre esse tema, inclusive. Eu discordo da visão psicologizante que entende as ferramentas como meros apetrechos para ajudar o inconsciente a entrar no clima da magia ou coisa assim. Cristais, por exemplo, são capazes de ampliar e fortalecer a sua aura e alguns dos seus centros energéticos ao serem manejados, e varinhas, adagas e espadas permitem direcionar a sua vontade e peitar os espíritos de um jeito que é difícil de fazer com as mãos vazias. A questão é que produzir consagrar ferramentas mágicas é trabalhoso e, quanto mais forte você ficar, mais fortes passam a ser as ferramentas que você produz também.
  • Passar por uma iniciação. Quando somos iniciados numa corrente, a gente passa a ter acesso às partes mais interiores daquela egrégora e a ter um contato mais direto com as forças que a sustentam. Isso dá um empurrãozinho a mais na hora de interagir com espíritos.
    Mas não se inicie em qualquer ordem ou tradição só por se iniciar. Há um ônus junto com esse bônus, e se depois você descobrir que quer fazer outra coisa, tem uns rolês que é um inferno para se desligar.
  • Aliados espirituais. Às vezes, esse é um bônus de uma iniciação – Mircea Eliade no seu livro sobre xamanismo comenta, por exemplo, os espíritos animais que o xamã recém-iniciado recebe como assistentes no seu trabalho. Mas nem sempre é necessário, e dá para receber essa ajuda como consequência das outras práticas feitas no seu processo de desenvolvimento, além de rituais específicos para isso – consta tanto na Goetia quanto no Arbatel que os espíritos podem nos conceder “familiares”, e há um procedimento nos PGM para se obter um paredros ou “assistente sobrenatural”.

Reitero que esses auxílios não substituem o desenvolvimento verdadeiro. São recursos que fornecem um empurrãozinho a mais. Porém, ao contrário do que muito colecionador de carteirinha de ordem possa pensar, ninguém é capaz de ser bem-sucedido apenas se encostando nas suas iniciações sem fazer todo o trabalho interno.

Por fim, é bom frisar que a questão da soberania espiritual não é apenas um recurso útil para quem pretende conduzir um trabalho mágico mais robusto, mas é algo que traz benefícios para todo mundo. Nesse processo, você passa a desfrutar de maior proteção espiritual, é mais fácil obter aquilo de que você necessita (vide o texto da Maíra sobre lei da atração) e a vida fica mais tranquila de modo geral.

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Para quem quer começar no caminho e entender melhor qual é a da questão da conexão com o Divino e como isso influencia o trabalho mágico, temos vagas para a nossa turma de junho e julho do curso Introdução Prática à Magia.

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  1. Num contexto mais contemporâneo, essa abordagem tem mudado, é verdade. Cada vez mais os ocultistas têm preferido uma prática mais colaborativa, mas é claro que isso não vale para qualquer espírito. Tem uns que só entendem a lógica da força mesmo. ↩︎
  2. Para entender esse comentário, recomendo esse mini-episódio do podcast Glitch Bottle, The Goetic Spirits & Iamblichus. ↩︎
  3. Cito O Tantra Iluminado, de Wallis, e os comentários de Kaplan em sua tradução do Sefer Yetzirah. ↩︎
  4. Para ser bem honesto, essa é uma hipersimplificação para propósitos didáticos. Há também um outro conceito, menos conhecido fora da Cura Prânica, que é o do cordão espiritual, um canal que liga a coroa com a nossa Alma Superior e que se torna mais robusto conforme a gente se desenvolve, mas eu não quis entrar em muitos detalhes. De novo, o Mestre Choa fala disso em seus livros Alcançando a Unidade com a Alma Superior e (especialmente) Om Mani Padme Hum – a Pérola Azul no Lótus Dourado. ↩︎
  5. Mais sobre isso no capítulo “Hermetica and Theurgy” em Theurgy: Theory and Practice – The Mysteries of the Ascent to the Divine, de P. D. Newman. O Sam Block também trata do tema mais longamente em seu blogue. ↩︎
  6. E mais uma vez, vou reiterar que é possível obter tudo isso de um modo simples a partir de uma rotina regular da Meditação dos Corações Gêmeos. ↩︎

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