Uma ilustração da diferença entre baralhos de tarô

Algumas pessoas andaram me perguntando sobre esse tema recentemente. No meu texto sobre Primeiros Passos com o Tarô, eu falo um pouco sobre a diferença entre baralhos, sobretudo as três principais vertentes: Marselha, Rider-Waite-Smith (RWS) e Thoth, que vão servir de base para a maioria dos baralhos que a gente encontra para comprar. Porém, como não é um texto especificamente sobre as diferenças entre os baralhos e eu quis reunir mais instruções para além dessa decisão, não tive espaço para entrar tão a fundo nisso. Hoje, vamos tratar desse assunto de um modo mais minucioso, então.

Para demonstrar essas diferenças, eu gostaria de pegar uma tiragem e apontar para como essa tiragem, com as “mesmas” cartas, pelo menos nominalmente, varia quando lemos o jogo via Marselha, Thoth e RWS.

Vamos começar com o Marselha. Meu exemplo inicial aqui vem da cartomante romena Camelia Elias, autora do livro Marseille Tarot: towards the art of reading. É uma figura de quem eu gosto muito e recomendo a vocês conferirem o site pessoal dela, onde tem as diversas entrevistas que ela já deu em podcasts variados, além do seu site Read Like the Devil, dedicado à prática da cartomancia.

Lá pelas tantas no livro, ela explica a lógica das suas leituras e nos fornece um exemplo. Suponha que uma consulente pergunte: Vou redecorar minha casa? E, se sim, por onde começo?

Como resposta, saem três cartas: um 8 de paus, um 3 de copas e um 5 de ouros (acima). Diz a autora, portanto:

Minha resposta seria derivada inteiramente a partir de inferências lógicas. Se eu tenho um método aqui, então, de novo, é o método das benzedeiras (cunningfolk) junto com o processamento da imagem. Para essa pergunta, se saem 8 de paus, 3 de copas e 5 de ouros, eu diria: ‘A cozinha’. Você planeja (8 de paus) embelezar (3 de copas) o lugar onde você cozinha ao lado do fogo para nutrir o seu corpo (5 de ouros).

Ou seja, como vocês podem ver, ela forma uma frase a partir das cartas. Eu acho muito divertido observar como ela chega a essa resposta, porque… assim, né, jogar com os arcanos menores do Marselha é basicamente o mesmo que cartomancia com baralho normal (uma prática, aliás, à qual Austin Osman Spare também era dado1). Como explica a Camelia, “Na cartomancia clássica, a gente não lê as cartas segundo princípios esotéricos. A gente lê com base no bom senso”. Ou seja, segundo ela, não cabem aqui os métodos de interpretação esotérica que se observa, por exemplo, nas explicações de Waite. Os naipes não são os 4 elementos, os números 8, 3 e 5 não são as sefiroth de Hod, Binah e Geburah, respectivamente, da Árvore da Vida.

Por um lado, isso dificulta a nossa vida, porque, enquanto magistas, ter esse núcleo compartilhado de referências é uma mão na roda. Quando saímos disso, é natural ficar um pouco desnorteado. E esse território é especialmente desnorteador, porque as tradições orais têm muita variação regional. E, assim, também não quer dizer que jogar o tarô aqui aplicando um viés cabalístico seja errado, mas eu entendo que seria um método que não respeita, digamos, a especificidade do Marselha. Por isso eu sou simpático à leitura da Camelia, por mais que (ou talvez justamente por isso) ela me deixe meio desconfortável.

Se não usamos princípios esotéricos, então quais princípios usamos? Diz ela que um dos exemplos é “a ideia de que cores significam qualidade e caráter, e que os números significam quantidade e direção ou comprimento”. Como ela explica:

Um é pouco; dez é um monte.
Passamos entre observações de unidade e divisão, contração e expansão, e proximidade e distância. Taças [copas] e moedas [ouros] são próximos a nós; são coisas que a gente segura na mão; espadas e bastões criam distância.
Se temos uma série de cartas que envolve vários arcanos menores, ao olharmos a progressão numérica podemos determinar o tempo: as coisas estão se desenvolvendo rapidamente nesse projeto? Sim, se encontrarmos essas cartas na série: 3 de paus perto do 9 de paus.

E por aí vai. Quanto aos significados dos números, se os reduzirmos a palavras-chaves, a legenda seria a seguinte:

2 – Cooperação ou separação
3 – Incrementos ou disseminação
4 – Estabilidade ou restrição
5 – Saúde e o corpo
6 – Caminhos e escolhas
7 – Desafios
8 – Desejos e medos
9 – Mudanças

Como se chegou a isso, aí são outros quinhentos. Mas no geral bate com a descrição que a gente lê também num livro como O tarô de Marselha do Carlos Godo, e não é difícil fazer uma engenharia reversa dessas conclusões, pensando um pouco. O 2 ser cooperação ou separação faz sentido, porque, se o ás é uma pessoa sozinha, ao encontrar uma outra pessoa elas podem se agregar ou arranjar briga (e aí, para decidir qual é qual, vale o que a Camelia fala sobre copas e ouros aproximarem e paus e espadas afastarem). O 3 é um incremento em cima do 2, e o 5 ser ligado ao corpo remete à nossa constituição de 2 (braços) + 2 (pernas) + 1 (cabeça). E por aí vai.

Agora vamos pular direto para o Thoth e fazer o exercício de imaginar que alguém fez a pergunta e saíram as mesmas cartas nesse outro baralho. O jogo ficaria assim:

O negócio do Thoth é que ele também apresenta imagens abstratas, mas agora são mais explicitamente associadas aos elementos clássicos (paus é fogo, copas é água, pentáculos é terra, espadas é ar), a referências cabalísticas e astrológicas, especialmente sua conexão com os 36 decanos do zodíaco – para entender o básico sobre os decanos, recomendo conferir nosso texto introdutório anterior. Para ajudar um pouco a vida dos iniciantes, cada arcano menor tem um título que você lê ali embaixo na carta. Quanto às referências astrológicas, é bom frisar que, diferente de como poderia ocorrer com uma leitura mais esotérica do Marselha, elas não são apenas projetadas pelo leitor, mas sim estão ali nas cartas. No 8 de paus está mais visível, mas pode observar que todas as 3 cartas têm um simbolozinho de um planeta e um signo em algum lugar da ilustração.

A base do Crowley é o Book T, um documento da Golden Dawn (link aqui para ler) que prescreve o método que a ordem usava para a leitura. Via de regra, ele se aproxima bastante de como a GD chama os arcanos menores. De vez em quando tem uma alteração mais radical, mas o mais comum é ele simplesmente ser um pouco mais conciso – por exemplo, ao chamar o 7 de ouros não de “Senhor do Sucesso Malogrado” (Lord of Unfulfilled Success), mas sim apenas “Fracasso” (Failure). Direto, sem firulas. Até porque tem que caber no design da carta.

Analisando, então, em ordem:

  • 8 de paus. Lord of Swiftness (Senhor da Celeridade). Equivale ao primeiro decano de Sagitário (as cartas 8, 9 e 10 sempre tratam dos signos mutáveis e paus são os signos de fogo), regido por Mercúrio.
  • 3 de copas. Lord of Abundance (Senhor da Abundância). Equivale ao segundo decano de Câncer (as cartas 2, 3 e 4 sempre tratam dos signos cardinais e copas são os signos de água), regido por Mercúrio também.
  • E o último é o 5 de ouros/pentáculos. No Book T, ele se chama Lord of Material Trouble (Senhor das Perturbações Materiais), mas Crowley o renomeia com o título mais simples de (Lord of) Worry (Preocupação). Equivale ao primeiro decano de Touro (as cartas 5, 6 e 7 sempre tratam dos signos fixos e pentáculos são os signos de terra), regido por… Mercúrio!

Eu não sou nenhum especialista no tarô de Thoth, confesso. Porém, acho que não precisa disso para você reparar que três cartas seguidas regidas por Mercúrio são um indício meio forte dessa presença mercurial no jogo. E, assim, não dá nem para falar que é uma leitura forçada, porque, como eu falei, se você olhar a arte feita pela Lady Frieda Harris para as cartas do Thoth, os símbolos astrológicos dos decanos estão lá, em evidência. E a Susan T. Chang, em seu Tarot Correspondences, comenta a possibilidade de leitura nessa chave (capítulo “Putting it all together: basic methods for tarot + astrology”). Mas já chegaremos lá. O que me impacta aqui é que esse jogo me parece bem menos positivo.

A primeira carta, 8 de paus – Celeridade, indica isso mesmo, que as coisas vão andar rápido… mas quando foi, na sua vida, que você viu uma obra ser rápida? Eu que nunca vi. Tem caroço nesse angu. O Book T descreve esse arcano como: “Excesso de força aplicada de modo demasiado repentino. Uma investida bastante rápida, mas que passa e se exaure com rapidez”. Depois ele dá descrições mais positivas, mas é assim que começa.

E aí as outras duas cartas nos apresentam uma aparente contradição: o 3 de copas é Abundância, mas o 5 de ouros aponta para dificuldades financeiras. Qual é o que vinga, então?

Primeiramente, fico com a impressão de que o 3 de copas pode nos dar uma resposta parecida com a do jogo da Camelia Elias em termos do lugar da reforma: a cozinha. A cozinha, afinal, é um lugar de abundância (a dispensa cheia) e o Book T oferece também os significados de sucesso, prazer, sucesso passivo e comemoração. Diria que é até possível que a pessoa pense em montar um bar, uma churrasqueira ou outro espaço para receber gente e fazer festa.

Se a gente for pensar na tiragem de forma sequencial (e vivendo numa cultura que escreve da esquerda para a direita, acho natural fazer a leitura do tarô nessa direção também), surge uma narrativa. Celeridade combinada com Abundância me parece indicar um entusiasmo, tipo um dinheiro inesperado que entrou e, “opa, vou fazer uma reforma com essa grana para receber gente e fazer festa”. Porém, todo mundo que já lidou com pedreiro sabe que os caras enrolam e a obra sempre sai mais cara do que o esperado. Aí cai no 5 de ouros: a grana vai apertar mais para a frente. Melhor evitar2.

E onde que entra Mercúrio nesse jogo? Podemos pensar numa subcorrente por trás da narrativa. Há algo de mercurial nessa história toda. Talvez a pessoa que se tem em mente para fazer o serviço não seja confiável e haja uma necessidade de pesquisar melhor.

Uma outra possibilidade é pensar que, em vez da cozinha, daria para a resposta ser o escritório ou biblioteca, um espaço dedicado à comunicação, livros, computação, trabalho mental, assuntos típicos de Mercúrio. Abundância também é um arcano que se aplica a esse contexto. Quem é bibliófilo vai ter uma biblioteca farta e muito prazer em ficar em meio aos seus livros. O problema é que agora temos um impasse: não dá para a resposta ser a cozinha ou a biblioteca. Qual que vale?

Bem, a meu ver, esse é o tipo de questão que só se resolve no jogo ao vivo e não no exercício abstrato. É onde entra a parte da intuição e da relação pessoal que o cartomante constrói com o seu baralho, que pode ou não dar destaque a esse tipo de simbolismo astrológico. Tarô é comunicação, e as forças que agem aqui, quando tudo dá certo, são habilidosas em se fazer entender.

Por fim, vamos dar uma olhada em como ficam as coisas no Rider-Waite-Smith:

O RWS não trabalha com os mesmos títulos dos arcanos menores que o Thoth. Como dito, Crowley aqui se baseia no Book T, da Golden Dawn. O RWS, porém, apesar de ter alguma influência do Book T, não o segue à risca e tem outras referências, muitas das quais entendo que vieram do gênio da própria Pamela Colman Smith, que o ilustrou. Claro que a característica que mais chama a atenção, à primeira vista, é que seus arcanos menores são ilustrados, não com imagens abstratas e conceituais, mas com cenas, o que inclusive possibilita que muita gente tenha uma abordagem mais visual e intuitiva ao jogar com o RWS.

(Enfim, tem toda uma discussão no meio dos tarólogos entre jogar usando todo esse arcabouço simbólico esotérico ou se orientar mais pelas cenas visuais, que eu acho que não vale a pena entrar aqui. A minha opinião pessoal é a de que o arcabouço simbólico é válido, mas, na maioria das vezes, não acho que ele suplante a referência visual mais imediata.)

Em termos de significados, no entanto, o RWS não se afasta muito do Thoth nesse caso específico. O 8 de paus aqui também é uma carta que indica ação rápida e o 5 de ouros é dramático em sua ilustração de pobreza e abandono com as pessoas quebradas andando na neve (inclusive eu diria que é a carta de maior impacto visualmente nesse jogo). Acho que a principal diferença é que o seu 3 de copas não tem tanta ênfase na abundância que nem no Thoth. Digo, ela faz parte da carta (olha as abóboras no canto), e o próprio Waite comenta usando um sinônimo (“plenty“) no seu Pictorial Key to the Tarot, mas a ênfase me parece mais na alegria e comemoração. No seu sentido adverso pode inclusive representar os excessos de comida, bebedeira e prazeres mundanos. Se a gente se orientar apenas pelas imagens, desconsiderando o simbolismo mercurial dos decanos (como eu arriscaria dizer que a maioria dos leitores do RWS faz), o que não é viável com o Thoth, então me parece que voltamos à ideia da reforma precipitada da cozinha.

Concluímos que, nesse caso, o RWS concorda bastante com o Thoth (aliás, é surpreendente como a resposta “cozinha” apareceu nos três baralhos) e até daria para ficar com a impressão de que ele dá a mesma resposta de um jeito mais imediatamente óbvio para quem lê, por conta das ilustrações. Mas é bom frisar que nem sempre os significados entre os dois batem. Penso especialmente no caso do 7 de ouros, que tem ares positivos no RWS, com a imagem do homem olhando, satisfeito, para a sua árvore de dinheiro, enquanto no Thoth, como vimos, é Fracasso3.

E é isso, gente. Espero que esse exemplo tenha ajudado a entender um pouco melhor as diferenças entre esses tipos de baralhos no que diz respeito ao método empregado para sua leitura. Se eu tivesse que dar uma indicação, para iniciantes, eu diria que a minha recomendação é o RWS, justamente pela facilidade de ler com base nas imagens. Mas, se você tem afinidade com um método cartomântico mais dedutivo e de tradição oral, o Marselha pode ser mais interessante, enquanto o Thoth é para quem gosta mesmo é das referências esotéricas. Tem para todos os gostos.

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  1. cf. “Fórmula Quinta: Sobre os Sortilégios por meio de Cartas” n’O Grimório Zoético de Zos. ↩︎
  2. Alguns cartomantes também gostam de aplicar o método de somar os números dos arcanos e ver no que dá. Aqui 8 + 3 + 5 = 16. E 16 é o número da Torre. Credo. ↩︎
  3. E, de quebra, parece que o Crowley enfiou uma simbologia geomântica também na carta, pois os discos aí formam a figura de Rubeus, uma das mais negativas da geomancia. ↩︎

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