Lúcifer e Prometeu

É possível que este texto irrite algumas pessoas, mas não é de hoje que eu tenho um pé atrás com o dito “caminho da mão esquerda”1 da tradição esotérica ocidental – apesar que ultimamente minha opinião sobre essas práticas tem se tornado mais negativa do que era antes. Se você se identifica com esse caminho, tem esse tipo de prática e isso tem funcionado para você, então: que bom! Pode ignorar o meu texto e seguir fazendo o que faz. Suspeito que você não seja o meu público, e está tudo bem, tem outros autores que você pode ler. Me xingar vai ser perda de tempo, já aviso, além de sinal de fraqueza. Se és tão poderoso, vais te deixar engatilhar por um texto de blog?

Eu mantenho que, EM TESE, aproximar-se de forças e consciências mais trevosas e comungar com elas até pode TALVEZ hipoteticamente ser benéfico para algumas pessoas, em algum grau – as forças com quem cada um tem afinidade nesta vida não é uma coisa sobre a qual a gente tem controle, – mas isso é para praticantes avançados e gente com um grande equilíbrio interno. E tem também aí uma influência do tipo de sistema usado, claro. Conheço alguns praticantes de Goécia que são pessoas sérias e equilibradas, mas as coisas mais pesadas do que isso, como magia qlifótica, demonolatria e diabaria freestyle… aí são outros quinhentos, e não são poucos os exemplos de pessoas, inclusive que eu conheci, que se afundaram por causa disso. Lembra o que eu falei sobre travas de segurança? Pois é. Ironicamente, o que mais acontece é esse meio atrair as pessoas mais desequilibradas do ocultismo, eternos adolescentes que não entendem que seus gostos musicais não devem ditar seu caminho espiritual, maníacos que querem matar seus inimigos sem irem presos, golpistas diversos e aspirantes a E. A. Koetting… e também não ajuda quando uma editorinha aí que até então até que era respeitada de repente decide publicar material de ordem de satanismo neonazista, um negócio tão comicamente perverso que parece coisa de vilão de desenho, enquanto um bando de otário aplaude – e o pior é que eu posso falar em “ordem de satanismo neonazista” e se alguém quiser saber qual é, vai ter que me perguntar pessoalmente, porque tem umas cinco que eu lembro assim de cara que se encaixam nessa descrição. Então, até segunda ordem, se me perguntarem sobre esse caminho, eu vou dizer que o melhor é não mexer com isso.

Só que o que acontece com alguma frequência é que as pessoas me perguntam algo e aí ficam revoltadas quando eu dou minha opinião e não é o que elas esperavam. Não é como se eu estivesse proibindo alguém de fazer, mas não recomendo e nunca recomendei. Se você for brincar com isso e explodir na sua cara, não é problema meu.

Aí uns meses atrás me perguntaram no Curious Cat sobre a figura de Lúcifer, se eu não achava válido trabalhar com Lúcifer no papel de algo como um “rebelde iluminado”. Deixo claro que não achei a pergunta ruim, pelo contrário. No entanto, rolou depois uma discussão com outros anônimos, porque eu disse que, nesse sentido, era mais recomendável o trabalho com uma deidade como Prometeu. Ambas as figuras são bastante parecidas em alguns quesitos mais amplos, mas radicalmente distintas nas miudezas, por isso achei que valia a pena dedicar um texto inteiramente a esse assunto. No mais, eu acho interessantíssimo como essas duas figuras se encontram de certo modo enroscadas na história do imaginário ocidental, graças aos românticos, e por isso, em termos práticos, é importante promover um certo desenrosco a fim de evitar que as pessoas se metam numas furadas por ignorância.

Vamos começar com uma descrição de Prometeu, sua mitologia e culto, depois tratamos de Lúcifer para, no final, fazermos a comparação.

Prometeu, o ladrão do fogo

Prometeu geralmente é descrito como um titã, a geração de deuses que surge a partir dos deuses primordiais, mas que os suplanta e acaba, por sua vez, suplantada pelos olímpicos. No entanto, ele não é em si dessa mesma geração, mas o filho de um titã, Jápeto. A mãe de Prometeu varia de acordo com a tradição e às vezes é a oceânide Clímene, às vezes é Têmis, a deusa da justiça.
Seu nome vem de pro + meteus, “pré-vidente”, e contrasta com o de Epimeteu, seu irmão, “o que vê depois”, que é o contrário dele: tudo que Prometeu tem de sábio, Epimeteu tem de estúpido.

Dirck van Baburen – Prometeu Acorrentado por Vulcano (1623)

O aspecto mais famoso da mitologia prometeica é que ele teria estabelecido a instituição do sacrifício e roubado o fogo dos deuses para dá-lo à humanidade, o que o levou a ser castigado. Esse episódio está devidamente cantado nos versos de Hesíodo. Diz o poeta na sua Teogonia (tradução de Jaa Torrano):

Quando se discerniam Deuses e homens mortais
em Mecona, com ânimo atento dividindo ofertou
grande boi, a trapacear o espírito de Zeus:
aqui pôs carnes e gordas vísceras com a banha
sobre a pele e cobriu-as com o ventre do boi,
ali os alvos ossos do boi com dolosa arte
dispôs e cobriu-os com a brilhante banha.
Disse-lhe o pai dos homens e dos Deuses:
“Filho de Jápeto, insigne dentre todos os reis,
ó doce, dividiste as partes zeloso de um só!”.
Assim falou a zombar Zeus de imperecíveis desígnios.
E disse-lhe Prometeu de curvo pensar
sorrindo leve, não esqueceu a dolosa arte:
“Zeus, o de maior glória e poder dos Deuses perenes,
toma qual dos dois nas entranhas te exorta o ânimo”.
Falou por astúcia. Zeus de imperecíveis desígnios
soube, não ignorou a astúcia; nas entranhas previu
males que aos homens mortais deviam cumprir-se.
Com as duas mãos ergueu a alva gordura,
raivou nas entranhas, o rancor veio ao seu ânimo,
quando viu alvos ossos do boi sob dolosa arte.
Por isso aos imortais sobre a terra a grei humana
queima os alvos ossos em altares turiais.
E colérico disse-lhe Zeus agrega-nuvens:
“Filho de Jápeto, o mais hábil em seus desígnios,
ó doce, ainda não esqueceste a dolosa arte!”.
Assim falou irado Zeus de imperecíveis desígnios,
depois sempre deste ardil lembrado
negou nos freixos a força do fogo infatigável
aos homens mortais que sobre a terra habitam.
Porém o enganou o bravo filho de Jápeto:
furtou o brilho longevisível do infatigável fogo
em oca férula; mordeu fundo o ânimo
a Zeus tonítruo e enraivou seu coração
ver entre homens o brilho longevisível do fogo.

Nessa representação, datada de mais ou menos 700 a.C., Prometeu assume também ares de um outro arquétipo célebre, o de trickster. Ao enganar Zeus, ele firma a lógica do sacrifício grego: a carne das hecatombes é para ser consumida pelos humanos, e os deuses ficam com os ossos e gordura, uma cena bem conhecida a quem tem alguma familiaridade com a Ilíada. O fogo, que Zeus pretendia manter entre os deuses, também é roubado e entregue numa férula. Como resposta, Zeus castiga a humanidade com a criação de Pandora e manda acorrentarem o titã no Cáucaso, onde uma águia devora eternamente o seu fígado. Hesíodo é lacônico quanto a essa parte: “Não se pode furtar nem superar o espírito de Zeus / pois nem o filho de Jápeto o benéfico Prometeu / escapou-lhe à pesada cólera, mas sob coerção / apesar de multissábio a grande cadeia o retém”. O tema do castigo de Prometeu é elaborado mais longamente na tragédia Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, tragediógrafo do século V a.C.

Prometeu Acorrentado é uma peça fascinante, porque também insere uma camada a mais de complexidade no conflito entre os deuses. Tudo começa com a cena da crucificação de Prometeu por Hefesto, acompanhado de Bia e Kratos (sim… Kratos…), personificações da Violência e da Força, ao que se segue uma estrutura dramática em que o personagem de Prometeu permanece estático sobre o palco (afinal, está pregado), enquanto personagens diferentes passam e interagem com ele. Primeiro, após um belíssimo discurso em que ele esbraveja sua ira e pede para que as forças da natureza o escutem, um coro de Oceânides aparece, ao que se segue o pai delas, o próprio Oceano. Depois, vem Io, a princesa com quem Zeus teve um caso e foi punida por Hera, transformada numa novilha e perseguida por um moscardo que a morde sem parar e a obriga a viver numa eterna fuga (de modo que o seu movimento incessante contrasta com a imobilidade de Prometeu). Prometeu, como seu nome indica, teria capacidades de vidência e prevê o futuro de Io: ela está destinada a chegar ao Nilo2, onde será restaurada à forma humana e terá 50 filhas, uma das quais (a única que não vai matar o próprio marido) será a origem de uma linhagem que resultará, várias gerações depois, na concepção de Hércules, o herói que libertará Prometeu.

Contudo, há mais uma informação importante sobre o futuro que está ao alcance do titã: Zeus estaria destinado a conceber um filho mais poderoso do que ele próprio e que viria a suplantá-lo, assim como ele suplantou o seu pai. Ao deixar escapar esse detalhe, Prometeu é interrogado por Hermes, que pede para que ele entregue esse segredo e se salve. Prometeu, no entanto, resiste e termina a peça sendo tragado pela terra, após uma tempestade e um terremoto, e afundando no Tártaro.

Prometeo (1930), mural de José Clemente Orozco

Pelo que se sabe, Prometeu Acorrentado seria parte de uma trilogia, junto com as peças Prometeu Piróforo e Prometeu Liberto, que não sobreviveram. Não sabemos ao certo a ordem das peças, nem se era de fato uma trilogia, mas sabemos que a história termina com a conciliação entre Zeus e Prometeu, que é enfim, como dito, libertado por Hércules. Segundo comentadores como H. D. F. Kitto, em Tragédia Grega – Estudo Literário, o fogo de Prometeu não apenas seria o fogo literal, que a gente usa para esquentar comida, mas um símbolo do fogo do intelecto, de modo que o conflito Zeus x Prometeu é na, verdade, uma conflito entre a Inteligência e o Poder. No mais, embora seja difícil, numa leitura moderna, não projetarmos nossos valores e entendermos Prometeu como um rebelde injustamente oprimido por um tirano autocrático, Kitto aponta para o fato de que, para um público grego, os dois lados teriam tanto falhas quanto características atenuantes: se Zeus é violento, essa violência pode ser entendida como consequência de ele ser ainda um rei jovem, tendo recém-adquirido o poder após a Titanomaquia; e apesar de nossa simpatia por Prometeu, ele representaria para os atenienses as falhas de arrogância e insubordinação intelectual (lembrando que esse foi o mesmo pessoal que mandou Sócrates tomar cicuta). Há outros nomes na scholarship da tragédia que partilham dessa interpretação, como Jacqueline de Romilly (A Tragédia Grega) e Suzanne Saïd (“Aeschylean Tragedy” em A Companion to Greek Tragedy). Saïd tem um comentário especialmente pertinente no que diz respeito às consequências humanas desse conflito e reconciliação divinos:

Ensinado pelo tempo, o novo deus assumirá um caráter diferente no futuro: (…) Essa mudança será espelhada por um avanço paralelo no mundo humano. Aos homens foram dadas as habilidades e conhecimentos técnicos por Prometeu, mas ainda lhes faltam as virtudes que pertencem a Zeus e possibilitam a existência de comunidades humanas; essas virtudes, nas palavras de Protágoras, em Platão (322c) são diké e aidós (justiça e respeito)

Uma outra faceta da mitologia prometeica foi a criação do ser humano a partir do barro, no que ele encontra óbvios paralelos com mitos de outras culturas, e que também aponta para uma motivação para ele ter roubado do fogo dos deuses: ele estava favorecendo, afinal, aquelas que eram as suas criaturas, mesmo que, para isso, precisasse ser subversivo. Nessa parte, os mitos variam imensamente. No diálogo Protágoras, Prometeu e Epimeteu ficam encarregados de criar todos os animais e distribuir suas características, só que Epimeteu é quem pede para fazer isso, e óbvio que ele faz merda, de modo que quando chega a vez de criar o ser humano, todos os atributos animais (garras, pelagem e tudo que dá aos bichos a capacidade de sobreviver) já haviam sido usados, e o ser humano é um mero macaco pelado. Com a aproximação do prazo para entregar esse trabalho, Prometeu se vê obrigado e roubar as artes de Hefesto e Atena, junto com o fogo, para que o ser humano pudesse ter alguma chance. A criação do ser humano por Prometeu aparece também em várias fábulas de Esopo, em Ovídio e alguns poetas menores.

Saindo do âmbito da mitologia e literatura, em termos de culto de fato, encontramos algumas menções, embora como um deus menor. Havia um altar a Prometeu em Atenas, associado à corrida as tochas (e nisso é difícil não pensar numa possível continuidade daí com a tradição moderna da tocha olímpica), e Pausânias menciona cultos tumulares em Argos e Fócis, onde Prometeu seria considerado um herói (uma outra categoria de seres, cujas características vocês podem conferir em Jâmblico). Aparentemente havia também em Tebas um culto iniciático de mistérios que teria sido fundado por Prometeu, o culto dos Kabiroi3. No entanto, não temos hoje nenhum texto sobrevivente de nenhum hino dedicado ao titã de autoria genuína da Antiguidade, como os hinos órficos ou homéricos – apesar que, nos hinos órficos, há uma menção a Prometeu no hino a Kronos, que pode talvez ser indício de uma equivalência entre os dois, mas aí essa é toda uma outra questão que não cabe discutir aqui.

Portador da luz e adversário

Em contrapartida, a mitologia de Lúcifer é, ao mesmo tempo, bem conhecida e complicada de traçar. É conhecida, porque qualquer um que tenha um mínimo de familiaridade com o cristianismo sabe a história de cor: Lúcifer, o mais belo dentre os anjos, se rebela contra Deus por orgulho e é castigado com a expulsão das hostes celestiais. Como vingança, ele reaparece no Éden na forma da serpente e leva o ser humano a pecar e cair. A parte complicada é que 1) essa narrativa obviamente não está explícita na Bíblia, nem em qualquer fonte oficial, e 2) a literatura luciferiana (toda ela moderna, importante frisar) vai oferecer uma interpretação divergente, segundo a qual a rebelião de Lúcifer e a sua sedução de Eva teriam motivos mais nobres… mas, para chegarmos nisso, precisamos passar por um tanto de história.

Primeiramente: antes de mais nada, um breve resumo da história de Satã, porque as duas coisas estão interligadas. Satã ou HaSatan em hebraico, como se sabe, não é um nome próprio a princípio, mas a descrição de um ser que aparece no livro de na Assembleia Celestial como parte dos bnei Elohim, os filhos de Deus, com o intuito de convencer o Altíssimo de que seu maior servo, Jó, só o venera porque ele tem uma vida mansa. Se ele não tivesse tudo do bom e do melhor, pensa o adversário, então ele blasfemaria. Deus aceita a aposta e permite que o adversário tire tudo que Jó possui, sua riqueza, sua família, sua saúde, e a maior parte do livro consiste num diálogo entre Jó e seus amigos, culminando na aparição de Deus em Pessoa para dar um discurso assombroso diante de Jó, que tem o seu bem-estar restaurado no fim. Mas, como aponta Elaine Pagels, em The Origin of Satan, o termo Satan aparece em outros momentos do Antigo Testamento, às vezes como um anjo destruidor, como em Crônicas, às vezes para se referir a facções dentro do drama político do antigo Israel, como em Zacarias.

Outro desenvolvimento importante é o do mito da queda dos anjos, que começa a surgir entre os apócrifos, para expandir o trecho em Gênesis 6 sobre os nephelim. Segundo essa narrativa, registrada no livro de Enoque, anjos rebeldes como Shemhazai e Azazel teriam descido dos céus para copular com mulheres humanas, gerando monstruosidades como resultado e trazendo consigo saberes “proibidos”, como o conhecimento da metalurgia, da astrologia, da cosmética, da arte de manipular ervas, etc. É importante frisar que esse material surge num contexto bastante confuso, misto de revelação profética e sátira política contra os oponentes dos israelitas, i.e. os governantes do período helenístico que se apresentavam como herdeiros de linhagens divinas, mas não passavam, para os seus súditos, de aberrações geradas por anjos desviados. Com o tempo, a ortodoxia judaica vai passar a rejeitar o mito dos anjos caídos, porque entende-se que anjos não possuem livre-arbítrio, sendo meras extensões da vontade de Deus, assim como vai rejeitar também a ideia de qualquer dualismo, de que haveria alguma força oposta a Deus. No entanto, ambas as noções vão alimentar o imaginário cristão do começo da era comum e culminar na ideia de um anjo caído e transformado em demônio que tenta a humanidade – não por essa ser a sua função divinamente ordenada, mas como tática de guerrilha em sua prolongada batalha contra Deus, que só vai acabar no fim dos tempos, conforme descrito nas cenas do livro do Apocalipse. A ideia da queda de Satã aparece também em Lucas 10:18: “E disse-lhes: Eu via Satanás, como raio, cair do céu”.

OK, até aí tudo bem, mas e Lúcifer? Pois, vocês vão reparar que Lúcifer é um nome latino, combinando lūx, “luz”, e o verbo ferō, “carregar” (como em “mamífero”), um idioma que não consta entre os originais da Bíblia, que são hebraico e aramaico (Antigo Testamento) e grego koiné (Novo Testamento). Como substantivo comum, refere-se ao planeta Vênus, como aparece em Ovídio: Diffugiunt stellae, quarum agmina cogit Lucifer et caeli statione novissimus exit (“Dispersam-se as estrelas, Lúcifer ajunta as suas hostes e deixa por último seu posto no céu”, Metamorfoses, II, v. 114-115, na tradução de David Jardim Jr.). Nesse contexto latino, Lúcifer não era uma divindade propriamente, além de ter uma presença mínima na mitologia e não receber culto de que se tenha notícia.

Lucifer no quadrinho Sandman

No entanto, o nome “lucifer” aparece na Vulgata, a tradução oficial da Bíblia para o latim empreendida por São Jerônimo no século IV d.C. Como todo mundo que fala de Lúcifer precisa explicar em algum momento, tem um verso em Isaías que se refere a um tal Helel ben Shahar, literalmente “o radiante, filho da aurora”, mais uma alusão política, agora direcionada a um rei babilônico que é comparado ao planeta Vênus: “Como despencaste do céu, ó estrela da manhã, filho da aurora! Como foi derrubado por terra o que ditava sortes sobre as nações” (Isaías 14:12, na tradução da ed. Sêfer). De modo semelhante, a Septuaginta verte o termo como ‘eósphoros, um dos nomes gregos para Vênus, assim como vira Lucifer na Vulgata, o que não é uma tradução ruim, considerando o significado literal do nome e sua acepção latina como o planeta visto na alvorada, mas levou a interpretações errôneas. A tradução mais clássica da Bíblia em português, a Almeida (1693), diz “Como caíste desde o céu, ó Lúcifer, filho da alva! Como foste cortado por terra, tu que debilitavas as nações!”, e nisso acompanha a King James, de 1611, “How art thou fallen from heaven, O Lucifer, son of the morning!”. Assim Lúcifer oficialmente deixa de ser um substantivo comum para designar um nome próprio, e a leitura deixa de lado a política do primeiro milênio antes de Cristo para se concentrar nessa dimensão mais sobrenatural, ligando a sua queda com a queda de Satã em Lucas. Mas é provável que essa decisão tradutória fosse apenas uma chancela oficial para uma ideia de Lúcifer como Satã que já estava presente na cultura de modo mais amplo4.

Na literatura inglesa moderna, o nome Lúcifer aparece na peça de Marlowe, Dr. Faustus (1604, ano em que a tradução da Bíblia King James é encomendada), onde ele é representado como o chefe de Mefistófeles, outrora um anjo, “o mais amado de Deus”, caído por conta de seu “orgulho e insolência” e agora “arqui-regente e comandante de todos os espíritos” e “príncipe do leste”. Sobre o mito de Fausto, já falamos dele mais longamente aqui no site. Embora Satã seja mencionado uma única vez, Lúcifer é uma presença recorrente, e Belzebu e outros diabos também fazem uma pontinha. Na demonologia medieval tardia e do começo da era moderna, a gente sempre vai ter a figura de um arquidemônio, O Diabo com maiúsculas, que é o inimigo de Deus, mas seu nome próprio e sua identificação vai variar de tempo em tempo e de lugar para lugar. Às vezes é Satã, às vezes é Lúcifer, às vezes os dois são a mesma coisa; às vezes é Belzebu, às vezes é Belial. Na história da teologia cristã, segundo A. H. Kelly (Satan: a Biography) e Jan Fekkes (Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation), teria sido Orígenes de Alexandria (c. 185 – c. 253) o primeiro a identificar Lúcifer com o Diabo e com o pecado de orgulho e rebelião contra Deus, e essas fontes posteriores provavelmente vão beber daí.

Le génie du mal, escutura de Guillaume Geefs (1848), criada para a catedral de São Paulo, em Liège, mas que causou problemas pelo fato de Lúcifer aí estar gostoso demais

Por fim, quem vai passar tudo a limpo e transformar isso numa narrativa coerente e fascinante é, mais uma vez, um poeta. John Milton, em seu Paraíso Perdido (1667), usa o nome “Lucifer” para se referir a Satã antes da queda, e “Satan”, depois. O personagem também passa por uma transformação, tornando-se não mais belo e sim repulsivo, a ponto de ele sequer se reconhecer. No primeiro livro do poema, nós acompanhamos Satã logo depois de sua derrota, quando ele e seus comparsas (Belial, Moloch e grande elenco) estão caídos nas profundezas do inferno recém-criado para ser a sua prisão. Não demora muito para que ele fuja, no entanto, e se aventure pelo Caos, o espaço intermediário que preenche a maior parte do universo, até chegar à Terra, quando ele então fica sabendo dos planos de Deus no que diz respeito à criação da humanidade. Nesse momento, a ênfase da narrativa muda e passa a acompanhar Adão e Eva, além do anjo que reconta para eles os acontecimentos anteriores à sua concepção, incluindo as cenas de combate da Guerra nos Céus – que são divertidíssimas, aliás, porque descobrimos que foram os anjos rebeldes que inventaram a pólvora, os canhões e armas de fogo para obterem uma vantagem marcial, mas seus esforços são frustrados, porque Jesus desce o cacete em todo mundo a partir de uma carruagem que dispara raios. Depois Satã entra na serpente, seduz Eva e leva o casal a cair, levando o poema a se encerrar com a expulsão do Paraíso.

O grande problema de Milton, de uma perspectiva cristã, foi o mesmo do escultor de Le genie du mal, isto é ter feito de Lúcifer/Satã um personagem tão atraente – de longe o melhor personagem do poema. Segundo Stanley Fish, foi de propósito, para transmitir aos leitores os perigos dos charmes sedutores do diabo, mas nisso seu plano deu certo até demais e o resultado foi ter inspirado toda uma tradição de satanismo literário no período romântico, mas trataremos melhor disso daqui a pouquinho. Por ora, deixo uma citação do volume Satanism: a Reader, do capítulo de Julian Strube sobre Eliphas Lévi, que bebeu profundamente dessas fontes: “O motivo de Lúcifer ou Satã como rebelde revolucionário era amplamente disseminado nos círculos românticos das décadas de 1830 e 1840. Nas obras de Balzac, Hugo, Lamartine, Michelet, Vigny, Soumet ou George Sand, essa ideia costumava ser acompanhada de conotações políticas o até mesmo socialistas”. Importante frisar, porém, que essas conotações políticas do luciferianismo romântico parecem, infelizmente, ter ficado no passado.

Agora, precisamos voltar nossas atenções mais uma vez a questões de práticas espirituais propriamente.

A questão é que Lúcifer não é apenas uma figura do imaginário literário, mas na era moderna passa a ter uma existência enquanto entidade mágica nos grimórios. Na Hygromanteia, aparece o nome “Loutzipher”, claramente uma grafia meio graecizada para Lúcifer, como o demônio da primeira hora do dia da quarta-feira, dia de Mercúrio (seria divertido se fosse o dia de Vênus), sendo submisso ao arcanjo Ouriel. No Livre des Esperitz, ele forma uma demoníaca trindade de demônios governantes do inferno ao lado de Belzebu e Satã, à qual os autores se referem como L:B:S. Essa sigla aparece em conjurações da Ars Goetia (vide o livro do Dr. Stephen Skinner), onde também Paimon é descrito como obediente a Lúcifer e Belial como tendo sido criado logo depois dele. Importante citar também o fáustico Magia Naturalis et Innaturalis, onde ele aparece em inúmeras conjurações. E em Janua Magica Reserata (também disponível em tradução e comentário de Dr. Stephen Skinner), Lúcifer é descrito como um “grande espírito”, que não é possível invocar diretamente, mas cujo nome pode ser usado para adjurar e dominar todos os espíritos malignos. Essa afirmação, no entanto, é um pouco contrariada pelo infame Grimorium Verum, do séc. XVIII, que nos oferece uma imagem que todo satanista e metaleiro conhece – o sigilo de Lúcifer. Vocês sabem qual, parece um pentagrama invertido cheio de rococó.

Desde que uma amiga bateu o olho na imagem e viu O Pequeno Príncipe, eu nunca mais consegui não ver também.

Utilizando-se do seu sigilo e de fórmulas específicas, Lúcifer (ou um de seus secretários) pode então ser conjurado, nas segundas-feiras (o grimório Dragon Noir também associa Lúcifer a esse dia da semana) e ele aparece na forma de um rapaz bonito, que fica vermelho quando se enfurece, mas que no geral não apresenta nenhuma qualidade bestial. Também está associado à Ásia (há um arquidemônio para cada continente) e tem feitiços que o chamam para todo tipo de coisa – inclusive, claro, procurar tesouros escondidos. Quem relata a experiência de ter chamado essa entidade é o Wellington do canal do YouTube De Monge a Mago, neste vídeo aqui.

E acho que isso é um bom resumo da mitologia, história e presença no imaginário e em práticas espirituais da figura de Lúcifer, pelo menos anteriores ao século XX. É possível que tenha alguns grimórios que tenham fugido à minha atenção, mas acredito que esses sejam os principais.

Rebeldia e criatividade

Com tudo isso em mente e considerando a literatura luciferiana contemporânea, podemos concluir que existem, portanto, dois tipos de luciferianismo: o honesto e aquele que ou é iludido ou age de má fé. Explico: o honesto é o luciferianismo que reconhece a relação entre Lúcifer e o cristianismo, bem como sua associação com os planos infernais e com outros demônios, tal como está bem estabelecido pela história dos grimórios. Os livros de Michael W. Ford, por piores que sejam, pelo menos se enquadram nessa categoria, e o seu Apotheosis reconhece a associação de Lúcifer com Azazel, Samael, Satã, etc.. Já a segunda categoria inclui quem entende Lúcifer ingenuamente não como uma entidade real, mas apenas como um símbolo de rebeldia (e assim se abre para essas forças potencialmente destrutivas sem o saber) e os que alegam que não existe nada de demoníaco na sua figura, que é tudo uma campanha de difamação da parte dos cristãos e que Lúcifer é, na verdade, um antigo deus pagão. Assim como acontece com a turminha do “Lilith é uma antiga deusa mesopotâmica!” (uma mentira deslavada), não existe a menor evidência disso, e tentar usar o argumento de que Lúcifer é o planeta Vênus em latim, considerando a ausência de mitologia e cultos a Lúcifer entre os antigos latinos, é simplesmente desonesto, assim como é tentar apresentar magia luciferiana como simplesmente uma forma de magia astrológica ligada a Vênus5.

Eu acho que isso, essa dissimulação e tentativa de afirmar uma primazia transcultural de Lúcifer, é o que mais me incomoda no discurso de certos autores luciferianos. Embora cada linha tenha lá sua própria teologia, cosmologia e éthos, de modo a impossibilitar o resumo num texto de blog, alguns elementos são recorrentes. O primeiro é o individualismo, o que é parte integral do conceito de “mão esquerda” no esoterismo ocidental: o praticante não procura a comunhão com uma força divina transcendente, mas a preservação e deificação do seu ego individual (nisso, também há um afastamento do vama marga tântrico, para o qual esse conceito seria um caso claro de Avydia). Depois, há uma relação de tensão com as religiões abraâmicas. De certa forma, o satanismo é um tipo de supersessionismo: assim como os cristãos construíram sua religião com uma seleção e interpretação da mitologia judaica, ao mesmo tempo em que invalidaram seus valores e ritos, o satanismo moderno fez o mesmo com o cristianismo, às vezes somando aí um discurso de Novo Éon chupinhado da Thelema (que por sua vez também é um tipo mais bem-sucedido de supersessionismo). Nesse processo, certos valores, como a mansidão, a humildade e o ascetismo (que o cristianismo ocidental nunca praticou de verdade, mas aí é outra história) são descartados em prol de um louvor à força, ao orgulho e ao hedonismo6. E, claro, no caso luciferiano em especial, há uma ênfase na rebelião.

Como eu disse no meu texto sobre demônios, no contexto ocidental é compreensível que uma teologia surja com base na experiência da opressão pelas instituições religiosas que deveriam representar um deus de bondade e amor. Talvez não seja por acaso que conceitos gnósticos reapareçam a partir do século XIX, considerando como os sectos que hoje chamam de “gnósticos” foram os primeiros a entender o deus criador do mundo não como um deus verdadeiro, mas um impostor que deseja aprisionar as nossas almas na matéria. Assim como muitos luciferianos, os gnósticos reconhecem em Iavé, ou Saklas ou Ialdabaoth, a face do mal, de modo que a rebeldia luciferiana seria a única postura possível. Diferente deles, no entanto, até onde se sabe jamais foi postulada uma teologia gnóstica baseada na pura inversão, de modo a fazer de Satã o salvador – pelo contrário, para os gnósticos, a salvação geralmente chega pela via de Cristo, que é uma emanação das forças superiores que estão além do demiurgo. Por essa mesma lógica, o gnosticismo é ascético e não hedonista, pois não haveria nenhum prazer real no que o demiurgo tem para oferecer.

É curioso observar como essas coisas todas aparecem meio que ao mesmo tempo no período romântico – o satanismo, primeiro literário, depois de fato espiritual; o retorno do gnosticismo; e, com eles, também um tipo de redescoberta e louvor a Prometeu. Considere as artes do século XIX: Goethe, Byron e Herder escrevem poemas dedicados ao titã; Percy Bysshe Shelley lhe dedica uma peça poética inteira, Prometheus Unbound, releitura subversiva da peça perdida de Ésquilo (em cujo prefácio ele inclusive traça uma comparação com o Satã miltoniano) e sua esposa Mary Shelley inclui uma menção ao nome de Prometeu no subtítulo de seu romance Frankenstein. Na música, há peças de Liszt, Scriabin, Fauré, Schubert, Beethoven e muitos outros. E todas essas coisas aparecem juntas na mitologia de Blake. Um ser chamado Orc (muito anterior aos orcs de Tolkien, bom frisar) é a forma de Luvah, um dos quatro Zoas, no mundo degenerado, e representa ao mesmo tempo um rebelde satânico de energias incontroláveis, o cristo gnóstico7 inimigo do demiurgo (representado em Blake por Urizen) e uma figura prometeica (mais sobre isso neste blogue aqui). Por esse motivo, eu escolhi uma imagem de Orc para ilustrar este texto.

Orc emerge do fogo criativo para desafiar as forças do imperialismo. Placa número 12 de “America: a Prophecy”, poema e arte de William Blake.

Também Nietzsche era obcecado por Prometeu, em especial por sua representação em Ésquilo, e encontra nele as virtudes do Übermensch do seu Zaratustra – sobre o tema, recomendo conferir o artigo de Francesca Cauchi, “Nietzsche’s Zarathustra: Promethean Pretensions and Romantic Dialectics”. E é fácil enxergar os paralelos: o titã é um criador que dá sua dádiva livremente. E, ao ser castigado por esse ato, embora esbraveje contra o seu opressor, ele expressa a consciência de seu destino e o enfrenta com uma dignidade trágica: “Mas, que digo? Não sei antecipadamente / todo o futuro? Dor nenhuma, ou desventura / cairá sobre mim sem que eu tenha previsto. / Temos de suportar com o coração impávido / a sorte que nos é imposta e admitir / a impossibilidade de fazermos frente / à força irresistível da fatalidade” (trad. Mário da Gama Khury). Nisso, ele faz eco a outro valor, também caro a Nietzsche, de amor fati.

Quando colocamos lado a lado Prometeu e Lúcifer, junto com seus cultos e filosofias, algumas similaridades emergem. Ambos são castigados e expulsos da convivência com outros seres divinos, ambos são responsáveis por uma mudança ontológica no estado da humanidade. Lúcifer se rebela contra o deus abraâmico, é mandado para o inferno e depois leva Adão e Eva a caírem de seu estado de inocência, graças ao fruto da árvore do Conhecimento do Bem e do Mal – o que é visto positivamente pelos luciferianos, na medida em que esse conhecimento estaria associado à iluminação à qual seu nome alude, em oposição à condição de ignorância que Deus pretendia manter. Já Prometeu rouba o fogo dos deuses, representando o poder do intelecto e da criatividade, e o entrega aos seres humanos, sendo por isso acorrentado e enviado ao que é também uma outra forma do inferno, o Tártaro. No entanto, as diferenças são mais marcantes do que as semelhanças.

A mitologia grega prevê uma reconciliação para Prometeu que, no caso de Lúcifer, não é desejada nem pelos cristãos, nem pelos satanistas8. O individualismo de Prometeu se restringe ao seu sofrimento, de modo que o isolamento é o seu castigo, mas sua dádiva é entregue a todos, sem exigir nada em troca, nem mesmo culto. O luciferianismo contemporâneo valoriza o indivíduo e enxerga esse individualismo enquanto valor positivo em Lúcifer, mas gera, no processo, uma contradição que põe a premissa toda desse caminho espiritual em perigo: se a queda não foi uma queda, mas uma iluminação, por que um individualista como Lúcifer teria agraciado a humanidade com essa dádiva? E sem pedir nada em troca? Foi por amor à humanidade? Isso não me parece coerente com a busca maquiavélica por poder pessoal dos caminhos da mão esquerda, na qual a compaixão costuma ser restrita ou completamente abominada9. Ou será que ele nos pede algo em troca, como pede a Jesus no deserto que o venere, só que em termos não muito claros? Ou ele faz isso apenas como vingança mesquinha contra o seu inimigo? Ou como parte de uma aposta ridícula como é no livro de ? A ordem dos acontecimentos também é relevante. Lúcifer cai primeiro, por orgulho, e só depois leva a humanidade consigo – num ato possivelmente ressentido, de vingança – ao contrário de Prometeu que cai, porque ajuda a humanidade.

É claro que também poderia ser feita uma leitura do mito de Prometeu pouco simpática ao titã. Enquanto trickster, o roubo do fogo e o castigo poderiam ser vistos como não mais do que uma traquinagem, e existem interpretações de que os filhos de Jápeto seriam representantes de características negativas da humanidade, mas é preciso fazer um esforço para essa leitura funcionar, ao passo que a mitologia luciferiana rapidamente se revela incapaz de sustentar seus próprios valores. Nesse sentido, na medida em que estamos aqui promovendo uma rinha de figuras arquetípicas de “rebeldes iluminados” – e sem sequer entrarmos ainda no mérito dos problemas do trabalho espiritual, na prática, com entidades demoníacas – Prometeu parece infinitamente preferível.

Dito isso, eu bem sei que contradições e furos de lógica não bastam como argumento contra uma prática espiritual, porque as práticas não são construídas inteiramente top-down, com uma ideia racional que é executada, mas como parte de um processo gnóstico. Porém, mesmo no campo da espiritualidade propriamente, o caminho da mão esquerda é uma inovação, que mal tem 50 anos, e ainda precisa se provar em termos do que pode trazer de bom a nível do indivíduo e da humanidade. E isso é muito mais complicado quando estamos lidando com seres entendidos como demônios, não deuses demonizados, mas demônios de grimório, com sigilos que são usados como símbolos do luciferianismo. Todo mundo que escreve sobre o assunto da perspectiva de um praticante avisa que é perigoso (vide a Linda Falorio em seu Shadow Tarot, que explora os Túneis de Set da magia qlifótica, de quem falamos já anteriormente), mas algo perigoso precisa ter uma recompensa elevada como resultado para valer a pena, senão o que você está fazendo é imitar os caras de Jackass. E o resultado aqui muitas vezes é… nazifascismo. Sem brincadeira. E, pior, não é nem um nazifascismo incidental – consequência da ascensão do fascismo a nível global que acomete não apenas o mundo esotérico, mas também segue bem vivo em meio aos ateus-céticos-materialistas, – mas um fascismo radicado na própria filosofia do negócio. Em que medida um louvor da força, do individualismo e da transgressão, de julgar os outros pelos seus “méritos” (como se você tivesse acesso fácil e objetivo a essa informação) e com base nisso decidir quem é digno de compaixão, é condutivo à criação de uma sociedade melhor? Há um texto na Cvlt Nation, de 2020, que defende um caminho da mão esquerda antifascista, mas seus argumentos não me convencem e acho profundamente irônico o fato de ele citar ninguém menos que Stephen Flowers para sustentá-los. Quem sabe sabe.

Agora, se você pratica esse caminho e não é facho, nem convive com fachos, bem… antes de mais nada, parabéns por ler até o final um texto que vai contra as suas crenças e parabéns por ir na contramão do que parece ser uma tendência predominante nesse meio. Vou frisar que, luciferianamente (rá!), eu não te devo nada, mas vou explicar que o motivo de eu escrever esse texto não é para meter o pau, assim de graça, no que você faz, até porque eu não te conheço, leitor hipotético, mas porque essas práticas possuem um glamour dark que seduz muita gente incauta. O tanto de iniciante que chega para mim (e eu dou aula para muito iniciante) perguntando disso, o tanto de gente que cai no golpe de satanista de TikTok e Facebook… Assim, com este texto, eu me poupo o trabalho de ter que falar tudo de novo. Pelo menos, agora está aqui por escrito, com detalhes e bibliografia. Se você é iniciante, leu até o final e pensou, “estou ciente e quero continuar”, então boa sorte. Se der ruim (e eu torço para que não dê), que não seja por falta de aviso.

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  1. Entre aspas, porque o que se chama de mão esquerda ou LHP (Left Hand Path) no ocidente é uma apropriação malfeita do vama marga tântrico por via dos preconceitos da Blavatsky e toda uma confusão infernal feita no século XX. ↩︎
  2. No sincretismo greco-egípcio, a princesa Io é identificada com a deusa Ísis. ↩︎
  3. Em termos de fontes, informações sobre os cultos mencionados nesse parágrafo constam na página do site Theoi sobre Prometeu. Sobre os Kabiroi, conferir o capítulo “Evolutions of a mystery cult: the Theban Kabiroi”, em Boiotia in Antiquity, de Albert Schachter. ↩︎
  4. Nisso, pela primeira vez vou ter que defender Lutero, porque ele diverge dessa leitura e diz apenas: Wie bist du vom Himmel gefallen, du schöner Morgenstern! ↩︎
  5. No começo desse parágrafo, eu concedo que o livro do Ford pode ser elogiado por não mascarar a dimensão demoníaca de Lúcifer, mas ele cai nesse erro de fazer umas misturas alucinadas com base nesse paralelo astrológico, passando a incluir, é claro, divindades como Inana/Ishtar nesse mesmo balaio. No mais, ele é outro palhaço que passa pano para satanismo nazista. ↩︎
  6. Quem entende alguma coisa de astrologia vai reparar que, desses valores, apenas o hedonismo é verdadeiramente venusiano. O orgulho e o poder são mais solares ou marciais. É por essas e outras que é balela o argumento de que, “ai, o luciferianismo na verdade gira em torno de Vênus”. ↩︎
  7. Vale lembrar que Cristo também se identifica como a estrela da manhã: “Eu, Jesus, enviei o meu anjo, para vos testificar estas coisas nas igrejas. Eu sou a raiz e a geração de Davi, a resplandecente estrela da manhã” (Apocalipse 22:16). Mas aqui o original grego diz ho astēr ho lampros ho prōinos e a Vulgata traduz não como Lúcifer, mas stella splendida et matutina. ↩︎
  8. Nisso, Eliphas Lévi parece ter sido uma exceção. ↩︎
  9. A compaixão é limitada em Ford e abominada num livrinho de um tal A. C. M., cuja seção sobre o éthos luciferiano é, por acaso, uma das representações mais lastimáveis de imaturidade emocional que eu já li num livro de ocultismo. ↩︎

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  1. Avatar de Raphael Raphael disse:

    Esse artigo que você escreveu me leva a refletir sobre uma questão: como abordamos a própria dualidade? Quando trabalhamos com anjos ou arcanjos, inevitavelmente tomamos partido e podemos cair nas ilusões da dualidade, hierarquia e ordem. Embora eu valorize a ordem, é importante lembrar que certas correntes esotéricas buscam compreender o Kaos como uma forma de transcender essa dualidade. Observo isso em algumas vertentes luciferianas.

    A Sephirah Daath na Cabala permanece enigmática e pouco explicada, o que permite múltiplas interpretações. Esta sephirah oculta, representando o conhecimento não manifestado, situa-se precisamente no abismo entre os mundos superiores e inferiores da Árvore da Vida. De modo fascinante, é neste ponto de transição e aparente vazio que podemos encontrar paralelos com o conceito de Kaos primordial – não como desordem destrutiva, mas como potencial ilimitado anterior à forma. Talvez seja por isso que figuras como Lucifer, cujo nome atraente significa ‘o portador da Luz’, exercem tanto fascínio. Contudo, isso não significa necessariamente que ele seja a própria Luz; talvez represente justamente essa escuridão fértil, esse Kaos primordial de onde todas as possibilidades emergem.

    Na ausência de referências ancestrais, muitos buscam figuras como Lucifer ou Lilith como resposta ao conhecimento perdido durante a cristianização do Ocidente. Quanto mais estruturado e perfeito um sistema, maior o paradigma que cria. Como podemos transcendê-lo? Esta é uma pergunta para a qual ainda busco resposta. Pessoalmente, pratico a Cabala Hermética e aprecio o Ritual Menor do Pentagrama. Sinto genuinamente a presença dos arcanjos, especialmente Raphael, mas a preocupação com a dualidade permanece.

    Outro aspecto que me inquieta é o simbolismo da cruz cristã – não por aversão, mas pela associação automática com Jesus, cuja história contém elementos historicamente questionáveis. Não nego sua existência, mas reconheço a ausência de provas definitivas e, considerando a história da ascensão do cristianismo, sinto dificuldade com rituais centrados na cruz cristã. Questiono até mesmo a lógica da Igreja Católica em seus exorcismos contra espíritos obsessores (chamados ‘demônios’), utilizando a cruz como instrumento. Pergunto-me se o paradigma cristão de fato alcançou as profundezas que pretende atingir.

    Para mim, existem forças caóticas e ordenadas, ambas essenciais para o mundo que conhecemos. A transcendência da dualidade faz parte de nossa evolução espiritual. Por isso, acredito que devemos examinar as correntes esotéricas da ‘mão esquerda’ com uma perspectiva mais ampla. Reconheço seus perigos, seu caos inerente e a facilidade de se perder nesse caminho. É um percurso que inspira temor e não se destina a todos.

    Gostaria de agradecer seus trabalhos, fiquei encantado pela seriedade e sinto muito gratidão pelo que você vêm desenvolvendo aqui. Faz falta pessoas como você. Seus trabalhos me ajudam muito e você me deu uma certa segurança para eu continuar com meu desenvolvimento.

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    1. Avatar de fraterabstru fraterabstru disse:

      Meu amigo, agradeço pela apreciação pelo nosso trabalho e por trazer essas questões pertinentes ao debate. Infelizmente, não posso me demorar aqui, porque se deixar esse debate vai longe, mas gostaria de te apresentar a nossa perspectiva.

      Eu entendo que é um equívoco dualista partir do princípio de que o oposto simétrico de um anjo é um demônio, e que, por isso, uma prática espiritual balanceada envolveria buscar uma mistura das duas coisas, “ordem” e “caos”. Isso é como entender que uma alimentação balanceada teria que incluir vegetais frescos de um lado e o consumo de crack do outro. Além do mais, existem práticas, como a Goetia de Dr. Rudd, em que anjos são invocados para controlar os demônios, e aí a ideia de um oposto simétrico vai pelo ralo.

      Uma forma mais produtiva de enxergar a questão é pela polaridade material/denso e divino/sutil, com todo um espectro entre um extremo e outro. Enquanto seres encarnados, o nosso default é pendermos para a matéria, que é densa. A esfera que os anjos e outros seres afins ocupam, por sua vez, está do outro lado desse contínuo, que é a esfera do divino, do imaterial e do sutil, e o desenvolvimento espiritual está em buscar se aproximar dessa esfera.

      Sem uma prática espiritual, a gente se perde no fisicalismo materialista e no próprio ego, que até tem um lado bom (estar encarnado pode ser prazeroso às vezes), mas o corpo físico está sujeito à doença, à velhice e à morte, e o fisicalismo frequentemente leva ao desespero, o ego entrando em pânico ao ter consciência da sua própria desintegração. E é por isso que esse caminho espiritual costuma aparecer como uma ascensão, saindo do denso embaixo rumo ao sutil acima, substituindo o desespero por paz interior. Mas o que está acima é como o que está abaixo: mesmo no fundo da matéria existe uma fagulha do divino que a gente consegue enxergar quando refina a nossa percepção. E no auge do espiritual existem as sementes que vão dar origem à matéria cristalizada.

      O que pode acontecer de desequilíbrio no processo de desenvolvimento da espiritualidade é a pessoa se perder demais nas esferas superiores, passar muito tempo lá e desaprender a funcionar no mundo material, o que também é indesejável, porque nós viemos aqui encarnar para resolver coisas neste plano. Mas há uma solução simples nesse caso: aterrar, prestar atenção ao presente, fazer algo com as mãos e o corpo físico (como artesanato e exercícios), buscar o contato com a terra, a matéria e a natureza (o famoso touching grass). Não é mergulhar na mão esquerda, até porque o contato com esses seres não é condutivo ao equilíbrio, mas ao excesso, porque essa é a natureza deles enquanto seres que habitam uma esfera de forças que possuem lá o seu papel na existência, mas que são hostis ao nosso bem-estar. Sistemas de saneamento são importantes para nós, mas nenhum médico vai recomendar você passar mais tempo no esgoto para melhorar a saúde.

      Sobre a questão de Da’at, eu sou da opinião de que a Golden Dawn, Crowley e a Cabala hermética em geral têm uma compreensão equivocada da função dessa sefira. Na Cabala judaica, ela não é um abismo, mas uma ponte. Sobre esse assunto, recomendo este texto do site Chabad: https://www.chabad.org/kabbalah/article_cdo/aid/380342/jewish/Ten-Powers-of-the-Soul.htm. A sua compreensão e função de abismo na Cabala hermética é uma consequência da construção do sistema, que é radicado na Árvore da Vida de Kircher, mas há formas de engajamento com a Da’at que são mais saudáveis, a meu ver.

      Por fim, sobre a questão da cruz eu não tenho muito o que opinar e não sei o quanto um exorcismo cristão funciona ou não. Imagino que dependa muito do exorcista. O cristianismo oferece um caminho espiritual possível, mas, a contrapelo do que afirmam as autoridades cristãs, existem outros, e eu pessoalmente não tenho nenhuma conexão com o cristianismo. É importante cada um procurar aquele caminho que funciona para si.

      Um abraço!

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