Gramática da magia: analisando um feitiço de Hoodoo

Como já falei anteriormente, várias vezes n’O Zigurate e cursos, eu comento que entendo a magia como a interação com o mundo oculto. Coisas que a gente faz aqui afetam lá e vice-versa, que é a causalidade por trás dos feitiços. E é comum (embora talvez não obrigatório) que essa interação se dê por meio de símbolos e atos simbólicos. O passo a passo de um feitiço não consiste em atos aleatórios, mas em algo mais ou menos estruturado, ainda que não haja regras universais e nem sempre a lógica por trás deles nem seja aparente. Dito isso, muita coisa se repete e é profundamente instrutivo analisar feitiços a fim de observar isso que estamos chamando de uma gramática da magia ou o que o Jason Miller chama de spellcrafting (daí o seu livro Elements of Spellcrafting, que eu recomendo). É o que vamos fazer no texto de hoje.

Recentemente eu esbarrei num vídeo de um praticante de Hoodoo que atende pelo nome Hoodoo Moses (aqui o link do seu site, em inglês, e seu perfil é @ hoodoomoses no Instagram). E acho que esta vai ser a primeira vez que eu começo um texto falando de um vídeo que eu vi nas redes sociais e não é para falar mal. No caso, o Hoodoo Moses estava ensinando, num reel, ao seu público um feitiço para proteger a sua casa contra as visitas indesejadas da Gestapo do Trump, que é o ICE (algo que se faz necessário na distopia que são os EUA hoje). O link está aqui. A maioria do meu público é brasileiro e mora no Brasil mesmo, por isso eu não acho que esse feitiço seja útil, no geral, mas, como eu disse, o propósito do texto de hoje é analisarmos esse passo a passo para entender o que o feitiço faz e como ele opera.

Print do perfil do Hoodoo Moses no Instagram

Para o feitiço, os seguintes itens são necessários:

  • uma carta de baralho comum (um valete de espadas)
  • canetinha
  • água benta
  • cigarro

O passo a passo do ritual é simples. Primeiramente, você usa a água benta para batizar a carta, escrevendo em cima dela com a caneta o nome “ICE officer”. Isso estabelece a conexão. A carta é virada na direção anti-horária. Na sequência, dois trechos da Bíblia são usados. Um é do livro do Êxodo, capítulo 15, versículos 3 e 4, e o outro dos salmos (69:23). Os dois versículos são copiados sobre a carta, na frente (Êxodo) e no verso (salmo).

Por fim, você acende o cigarro e usa a brasa para queimar um buraco na carta em cima dos olhos do valete. A carta então é depositada embaixo do seu capacho. E é isso.

Eu acho interessantíssima essa receita, porque tem vários princípios da magia aí muito bem empregados. Como vocês podem ver, há etapas, e a primeira é o estabelecimento de um elo com o alvo. No caso, não se trata de uma pessoa específica (quando esse é o caso, no Hoodoo o comum é procurar o que chamam de personal concerns, i.e. peças de roupa usadas, fios de cabelo, esse tipo de coisa), mas de um cargo genérico, que pode ser ocupado por qualquer um. Frequentemente, essa função é desempenhada por um boneco – de onde vem a ideia da cultura pop do “boneco de vudu”. No entanto, valer-se de cartas de corte do baralho como significadores de pessoas é uma técnica que se observa comumente tanto na interpretação de tiragens quanto em magia com baralho, daí que o valete esteja sendo usado aqui no lugar de um boneco. E é relevante que seja um valete de espadas: junto com o valete de paus, os dois são figuras armadas e eu pessoalmente vejo as espadas como essa conexão com a lei. Também seria possível usar uma carta de tarô, mas um baralho de tarô é caro para você fazer esse tipo de estripulia, enquanto um baralho comum se acha baratinho em qualquer esquina.

A parte mais trabalhosa desse ritual é ter que ir atrás do padre da paróquia local para arranjar a água benta, que aqui é usada numa imitação de um rito de batismo. A partir do momento em que passamos a água benta na cabeça do valete, está estabelecida a conexão entre a carta e os oficiais do ICE, assim como o batismo estabelece a conexão entre uma pessoa ali e um nome. Assim, quando o cigarro for usado para queimar a carta na altura dos olhos, com o óbvio simbolismo de cegar o oficial, é na direção desse alvo que o desejo será voltado. Obviamente, o objetivo não é causar uma cegueira literal, mas obscurecer a visão deles para que não vejam você e sua família – uma cegueira simbólica, portanto. Feitiços de invisibilidade frequentemente operam por esse princípio: o objetivo não é ficar invisível literalmente, mas afetar de forma sutil a percepção dos seus perseguidores, para que não te achem.

E esse é o gesto central do feitiço: primeiro estabelecer a conexão entre o alvo e a carta como representante do alvo, por meio do batismo, depois queimar os olhos da figura. É importante frisar ainda que o uso do cigarro tem mais de um sentido. De uma perspectiva prática, a brasa do cigarro permite fazer uma queimadura precisa na carta, mas há um simbolismo também1. No cigarro vai tabaco (entre outras coisas), e o tabaco é uma planta muito usada em rituais de Hoodoo para expulsar influências indesejadas, mas também para dominação e controle (vide este link aqui e também o livro da Catherine Yronwode, Hoodoo Herb and Root Magic). Em termos de correspondências, na magia astrológica, o tabaco é uma erva de Saturno, que é um planeta maléfico e trata de limites2.

Por fim, temos o elemento bíblico. As tradições chamadas pelos nomes de Hoodoo, Conjure ou rootwork surgem no sul dos EUA entre a população negra convertida ao cristianismo (mais especificamente o cristianismo protestante), por isso é comum usarem versículos bíblicos nos feitiços, especialmente dos salmos. O salmo 69 tem várias funções, mas aqui a parte que está sendo usada dele é o versículo que diz: “Escureçam-se-lhes os seus olhos, para que não vejam, e faze com que os seus lombos tremam constantemente”. A conexão entre esse versículo e o feitiço é bastante óbvia, acredito. Do Êxodo ele cita dois versículos que tratam de violência contra os oficiais egípcios para a proteção dos hebreus em fuga: “O Senhor é homem de guerra; o Senhor é o seu nome. Lançou no mar os carros de Faraó e o seu exército; e os seus escolhidos príncipes afogaram-se no Mar Vermelho”. De novo, uma conexão temática entre o que está sendo dito (incluindo o contexto do versículo) e a intenção do trabalho.

Quando a gente vê uma prática mágica, uma coisa que eu acho sempre importante é perguntarmos: de onde vem a energia, o poder, desse ritual? Quais são as forças que estão sendo mobilizadas? Existem muitas práticas que a gente observa na magia popular que são radicadas no que se chama de magia simpática. O termo deriva da obra de sir James Frazer, autor do influente O Ramo de Ouro. Eu já falei de Frazer antes por aqui, inclusive com algumas críticas à sua obra, por isso não vou entrar a fundo no tema agora. Mas no capítulo III desse livro, ele cunha o termo sympathetic magic para falar dessas práticas em que se faz uma representação simbólica do que se deseja que aconteça a fim de fazer o desejo acontecer – uma vez que o termo deriva do grego sum+patheia, i.e. “sofrer junto”. Fala-se em termos de um elo simpático entre o alvo e sua representação e todos os gestos são pensados a partir disso.

No entanto, tem algo a mais. A meu ver, o que um ato de magia simpática faz, em termos mágicos, é a criação de padrões nos planos sutis. Ele informa o que é para acontecer e aponta nessa direção. Mas é preciso de mais alguma coisa, um combustível, uma força, uma energia, para fazer com que isso aconteça. E isso pode ter origens diversas. A força de um ritual pode derivar do uso extensivo de componentes naturais como plantas (é o que se observa no exemplo de um banho de ervas, por exemplo), pode derivar de uma deidade ou outra consciência de proporções cósmicas, pode inclusive usar a sua própria energia3. Nesse caso em questão, temos o uso de uma erva, que é o tabaco, e a presença dos salmos alude à energia de uma egrégora bíblica, mas tem mais do que isso. O Hoodoo tende a ter uma forte conexão com ancestralidade, por isso não é qualquer um que pode simplesmente ler uma meia dúzia de livros sobre essas práticas (muitas das quais não costumam ser excessivamente complicadas em termos de instruções) e sair ostentando título de rootworker, precisa ter vivência e essa conexão ancestral, porque, do modo como eu entendo, é daí que vem o poder real dessa tradição. Quem já viu um ritual simples de magia simpática sendo feito por uma pessoa incorporada entende o que eu quero dizer.

Por fim, dá para se afirmar ainda que o que esse trabalho faz é a criação de um talismã. No processo de batismo, inscrição e queima, a carta deixa de ser um objeto qualquer e se torna um talismã, energizado e carregado com uma dada intenção, com instruções para ser depositado num lugar específico para atuar – aliás, essa é a única coisa que eu acho que complica um pouco a receita, porque gringo não tem portão, nem muro, e aí qualquer um pode fuçar o seu capacho e encontrar a carta queimada embaixo, o que arrisca dar muito na cara. Por isso eu acho que, na prática, talvez seria melhor esconder em outro lugar, talvez dentro de um vaso de plantas.

E isso conclui a nossa breve análise desse ritual. Não é um ritual complicado, mas achei que era interessante comentar, porque há um belo alinhamento entre todos os seus componentes – materiais, textuais e gestuais – e dá para aprendermos muita coisa por meio da observação desse tipo de prática, não apenas dentro do contexto do Hoodoo, mas da feitiçaria no geral.

* * *

(Obrigado pela visita e pela leitura! Se você veio parar aqui n’O Zigurate e gostou do que viu, não se esqueça de se inscrever em nosso canal no Telegram neste link aqui. Anunciamos lá toda vez que sair um post novo, toda vez que abrirmos turmas para nossos cursos e todo tipo de notícia que considerarmos interessante para quem tem interesse em espiritualidade, magia e ocultismo. E é só clicar aqui se quiser agendar um atendimento comigo, ou então neste link para procurar um atendimento com a Maíra. Também estamos no Instagram (@ozigurate e @pranichealermaira) e Blue Sky (ozigurate.bsky.social e pranichealer.bsky.social).)

* * *

  1. Como SEMPRE TEM UM DESAVISADO, teve comentário de gente perguntando se não rola tirar o cigarro, “já que eu não fumo”, e trocar por café (??). Imagino que, com a análise que eu estou fazendo neste texto, dê para entender o motivo pelo qual isso não é possível. A respeito de substituição de componentes mágicos num ritual, eu já tenho um texto sobre isso aqui. ↩︎
  2. Embora Hoodoo e magia astrológica sejam tradições à parte, há sim uma influência de grimórios europeus no Hoodoo e as duas tradições, como demonstra o Balthazar, são compatíveis. ↩︎
  3. Não é recomendável usar principalmente a sua energia, porque faz mal para os seus corpos sutis. ↩︎

2 comentários Adicione o seu

  1. Avatar de Miss Cardisnk Miss Cardisnk disse:

    Cai totalmente de paraquedas nesse blog e já estou 100% fascinada com a análise e conteúdos, adoro estudar sincretismos, crenças populares e magias. Parabéns pelo artigo, excelente explicação.

    Curtir

  2. Avatar de José Victor José Victor disse:

    Texto maravilhoso, como sempre, parabéns pelo trabalho. Você teria outras referências de estudos confiáveis sobre hoodoo? Desde já agradeço

    Curtir

Deixar mensagem para Miss Cardisnk Cancelar resposta