Antes de mais nada, como este é um texto que trata daquilo que vamos chamar de “ego”, é importante definirmos o sentido em que o termo será usado aqui. Poupa-se uma dor de cabeça imensa quando a gente alinha os significados das palavras. Quando me refiro ao “ego”, tenho em mente essa parte da consciência que se identifica com a pessoa ou a série de pessoas, no plural, que nós somos nesta vida, esse ser humano encarnado que nasceu com um dado corpo físico, cresceu e mantém uma certa coesão por meio de sua memória e personalidade – uma unidade que, embora multifacetada e mutável ao longo do tempo, permanece unificada por meio de uma narrativa que nós contamos para nós mesmos. É quem temos em mente quando usamos o pronome “eu”1 (ou ego, em latim).
É relevante determinarmos isso de antemão, porque 1) a palavra “ego” tem um outro sentido completamente diferente dentro da teosofia2, e 2) a teoria de Freud, de cujas traduções as pessoas normalmente derivam o conceito de ego (o pronome pessoal Ich no original alemão), não contempla, em suas formas mais ortodoxas, a possibilidade da continuação da consciência após a morte. Quando falamos em espiritualidade, no entanto, a gente tende a reconhecer que a consciência persiste, de alguma forma, e que esta vida é apenas um estágio dentro de um processo mais amplo. Porém a consciência que vem antes ou depois desta vida vai ser alguma outra coisa que é difícil de conceber, enquanto este ego necessariamente vai acabar se dissolvendo junto com a morte do corpo físico (muito para o seu desespero, se não houver um preparo prévio). Na filosofia védica, entendo que esse sentido de “ego” é transmitido pelo termo em sânscrito ahamkara (fonte aqui), a parte do “eu” que não é a consciência mais profunda (atman, às vezes traduzido como “alma” ou self). Mas hesito em usar esses termos, porque o Vedanta é um território que está além do meu domínio.

Outra coisa que também preciso deixar claro é que eu tenho em mente sobretudo questões que afetam quem pratica magia ou outras práticas espirituais, mas entendo que o que eu vou dizer também se aplica, em algum grau, aos leigos, às pessoas que não têm uma dedicação à vida espiritual.
Nesse meio as pessoas gostam de falar mal do ego e merecidamente (até certo ponto), porque ele está o tempo inteiro sujeito a certas ilusões. Mas o ego tem uma função, na medida em que é o que colore a nossa experiência enquanto seres humanos. Para nós, pensar em seres sem ego algum é estranhíssimo, praticamente alienígena. As motivações que movem um ser sem ego são mais diretas, ao que tudo indica. Um ser sem ego que esteja preso à forma física vai agir apenas de acordo com as suas necessidades de sobrevivência, seu instinto. Um ser sem ego puramente espiritual age de acordo com os ritmos da Criação, a Vontade de Deus, a Lei Maior ou como você preferir chamar. O ser humano se encontra ali justamente nessa encruzilhada entre o material e o espiritual, logo a sua experiência é intermediada pelo ego.
Na prática, significa que somos seres confrontados por dilemas morais e decisões difíceis. Na literatura, isso fica evidente quando contemplamos o que era a forma poética grega considerada a mais elevada na antiga Atenas, que é a tragédia. Penso em Antígona, por exemplo, cujo mito é dramatizado por Sófocles: após seu irmão, Polinices, ser morto em combate numa tentativa de dar um golpe contra Tebas, é estabelecida uma lei que proíbe que Polinices seja enterrado (um destino horrendo para um grego antigo). Antígona desafia essa lei e enterra o irmão por entender que a lei divina, que dita a necessidade do sepultamento, é superior à lei dos homens. Por isso ela acaba condenada, o que resulta numa série de desgraças que concluem a peça. Dividida entre a autopreservação e fazer aquilo que seria o certo, ela escolhe a segunda opção, ciente do preço elevado a ser pago, o que faz dela uma heroína trágica. Já em Hamlet, outra tragédia, agora no teatro renascentista inglês, o desastre acontece porque o protagonista hesita e não consegue chegar a uma decisão. Mas o mundo também não nos espera.
Em nossa vida, raramente nossos dilemas são tão pesados nesse nível. No entanto, temos decisões difíceis para tomar ainda assim, quando nos vemos divididos, para dar alguns exemplos, entre fazer a vontade da família e seguir nosso próprio caminho, entre fazer dinheiro e viver a sua vida de forma mais autêntica ou entre o sucesso pessoal e a ética. Ninguém gosta de tomar essas decisões – qualquer que seja a alternativa escolhida, há consequências desagradáveis, – mas é por meio disso que a nossa alma amadurece, por assim dizer. No meu texto sobre o hermetismo, eu mencionei a ideia de que este mundo é um lugar de aprendizado, e é algo nesse sentido que eu tenho em mente. No processo, talvez a gente consiga, aos poucos, aprender a tomar decisões melhores e mais nobres. Talvez.
Desde o dharma das religiões do subcontinente indiano até o conceito da Verdadeira Vontade na Thelema, várias tradições espirituais entendem que a gente vem para esta vida por um motivo. Temos coisas para fazer aqui e o nosso ego pode decidir ajudar ou atrapalhar. Um ego saudável, portanto, é aquele que tem consciência de si. Ele não se dá um valor acima, nem abaixo do que é: nem síndrome de impostor, nem delírios de grandeza. Você sabe o que é capaz de fazer, aí vai lá e faz. Chegar a esse objetivo, claro, não é fácil. Se fosse fácil, a gente não encarnava.
O que é fácil é uma pessoa poderosa ter o ego inflado. A riqueza, a fama e o poder sobem à cabeça num instante. Mas, como tudo é uma questão de uma perspectiva deturpada, de uma ilusão, o que infla o ego não precisa ser algo mensurável, como dinheiro. Não falta gente com uma noção absurdamente delirante de si mesma que não tem qualquer lastro na realidade. E mesmo que a pessoa tenha dinheiro e poder reais, o sic transit gloria mundi é outro clichê literário por um motivo: ela não vai levar nada disso para o outro lado quando inevitavelmente morrer.

Mas agora imagina o que acontece quando a gente inclui magia no meio. Existe o estereótipo de que o pessoal da magia cerimonial tem o ego inflado, o que é bem verdadeiro, porque o combo de livros de estilo obtuso com um vocabulário de palavras em hebraico mal pronunciadas também sobe fácil à cabeça. Mas passe dez minutos olhando perfis de esoterismo no instagram que você vai ver que a bravata e as afirmações hiperbólicas (“tudo que você pensa sobre x está errado!”) são meio que a norma mesmo atualmente, nessa vida intermediada pelas redes sociais. Nesse contexto, se é isso que se vê, é até esperado que a pessoa que está chegando agora estude meia dúzia de coisas, faça o seu primeiro ritual na vida e depois saia se sentindo o próprio Merlin.
Tem um frisson quando a gente faz o nosso primeiro ritual, toda a emoção de estar experimentando, a hesitação, o suspense, o choque ao ver as coisas acontecendo. E aí para alimentar delírios de grandeza, ainda mais na juventude quando a gente já tende a se achar invencível, é um pulo. Se a pessoa der sorte, isso passa antes que ela quebre muito a cara. Se der azar, ela cai no buraco individualista dos livros da dita “mão esquerda” do esoterismo ocidental ou de correntes de magia de tendências solipsistas e psicologizantes (“é tudo o meu inconsciente que faz!”). Aí está feita a cagada.
O principal problema dessas correntes, a meu ver (há vários, mas tem um central a partir do qual os outros brotam), é justamente essa ênfase no indivíduo, a glorificação do ego. Porque eu entendo que, quando eu faço um trabalho, o que eu mesmo estou fazendo é um papel relativamente pequeno no processo: há outras forças nos patamares acima, abaixo e no mesmo nível que o meu, poderes que vão fluir pelos meus corpos sutis e que vão mobilizar outras consciências, de modo que tudo vira um esforço colaborativo. Se eu boto tudo isso no balaio do inconsciente, pela lógica do “espíritos são coisas da minha imaginação”, eu estou apagando essas forças e negando o reconhecimento que lhes é devido. E aí o que acontece?
Tem duas possibilidades. Se os espíritos forem perigosos, do tipo que precisa ser coagido, esse não reconhecimento leva a pessoa a baixar a guarda, a não cuidar das proteções do jeito certo, o que só pode terminar mal. Se os espíritos forem benevolentes, aí acontece que você vai alienar cada vez mais essas forças. Por acaso alguém gosta de gente ingrata? Quando o seu chefe assume os créditos pelo trabalho que você fez, você fica feliz? Óbvio que não. E é irônico, porque essa busca por poder pessoal pelo viés individualista resulta paradoxalmente num desempoderamento. Que fica ainda mais cômico quanto maior a arrogância que esses caras arrotam. E olha que estamos falando apenas dos aliados espirituais. Quando falamos de relações interpessoais no ocultismo entre pessoas de carne e osso, o que mais se vê é treta e gente que se lasca inteiro porque não sabe pedir ajuda.
Assim, voltamos ao tema da função do ego. Eu usei agora o exemplo do chefe, porque é meio por aí. O ego, a meu ver, é um gerente. Existe boa e má gerência, claro, e é importante reconhecermos quando a gerência é competente, mas é um delírio típico de quem está com a cabeça completamente carcomida pelo empreendedorismo achar que gerência resolve tudo e que é o dono da empresa e não os trabalhadores quem de fato produz as coisas.
O complicado é que eu não acho que, para quem tem uma vida não monástica, seja viável ou possível acabar com o próprio ego – como argumentei acima, a completa ausência do ego é estranha demais para a experiência humana. Quem acha que consegue cai no outro paradoxo, outra ilusão, que é a arrogância de achar que não tem ego. O que dá para fazer, no fim é 1) ter uma rotina de práticas de purificação e trabalho interno3, além desse esforço de auto-observação para procurar cultivar um ego saudável e 2) ter consciência de todo mundo, encarnado ou não, que te ajuda na sua vida, ser grato por essas pessoas e demonstrar isso da forma adequada.
No fim, este texto é sobre duas coisas sobre as quais é difícil falar, porque são palavras que ganharam um certo ranço – gratidão e humildade. Claro que esse ranço é compreensível: mesmo antes de os tilelê good-vibes arruinarem tudo, já tinha ali uns bons anos de programação televisiva baseada em humilhar pobre enquanto se usa o eufemismo de “gente humilde”, que tem que ser grata pelas migalhas que lhes são dadas. Isso já é o suficiente para muita gente não querer nem saber. Mas tem algo mais profundo aí que é o fato de que vivemos num mundo que nos vende o tempo inteiro a propaganda do individualismo, da comparação, da competição, os contos de fadas de “self-made men” e afins4. E esses pensamentos são capazes de causar um estrago profundo.
Assim, quando falo dessas palavras, o que eu tenho em mente é algo na linha de a necessidade de cada um reconhecer que, mesmo que você seja uma pessoa poderosa no plano físico ou, no plano metafísico, um praticante de magia iniciado, avançado, experiente e poderoso (uiui), você vai ter limitações (a morte sendo uma delas). E sempre vai ter, faz parte da existência humana, tanto que o desejo frustrado de imortalidade é literalmente um dos temas do Épico de Gilgamesh, de 3500 anos atrás. Quando eu penso em humildade, portanto, não é com a ideia de falsa modéstia ou diminuir quem se é5, mas o mero reconhecimento desse fato. A partir disso, somos levados à compreensão de que precisamos uns dos outros, de comunidade (tanto de gente encarnada quanto de gente não encarnada), e o sentimento de gratidão emerge naturalmente quando encontramos os nossos, o que nos leva a querer cuidar dessas relações, a fazer agrados e lhes dar o devido respeito. E, embora muito disso me pareça óbvio, eu acho importante vir aqui falar disso abertamente, inclusive como uma forma de ajudar a combater essa lógica individualista que não só nos aliena no mundo físico como ameaça expandir essa alienação para o mundo espiritual.
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- Já tivemos uma discussão sobre isso no texto “Uma introdução aos nossos corpos sutis”. ↩︎
- Quando a gente esbarra em “ego” num texto teosófico, a coisa costuma ser um tanto mais complicada e abrange vários níveis, como se pode ler aqui. ↩︎
- Em termos energéticos, a descrição do ego que eu fiz corresponde às funções do chakra do plexo solar. Em termos bastante resumidos, um plexo fraco deixa a pessoa bunda-mole, que permite que os outros passem por cima de você. Um plexo forte te dá assertividade, mas se ele estiver forte e sujo, essa assertividade vira egoísmo e a tendência de passar por cima dos outros. Uma das coisas que Pranic Healing faz é trazer esse equilíbrio. Como sempre, recomendamos a Meditação dos Corações Gêmeos. ↩︎
- Por exemplo, aquele golem malsucedido que atende pelo nome de Mark Zuckerberg recentemente revelou a visão dele de que, em meio à crise de solidão que aflige a modernidade, as pessoas, no futuro, poderão vir a substituir suas interações pessoas por I.A., o que demonstra mais um detalhe do projeto misantropo e destrutivo do Vale do Silício. ↩︎
- Uma coisa que eu não mencionei no corpo do texto, pelo bem da brevidade, é a questão do orgulho, mas vale falar disso aqui resumidamente: do modo como eu entendo, o orgulho enquanto sentimento referente às coisas boas que a gente conquista e realiza, é relativamente benigno, contanto que não suba demais à cabeça e você não esqueça de quem ajudou você nesse processo. Já o orgulho arrogante e o orgulho que impede você de pedir ajuda quando necessário são terrivelmente destrutivos. ↩︎
