Politeísmo sem caixas pretas, por Petter Hübner

Temos hoje, n’O Zigurate, um convidado muito especial. Petter Hübner, de Curitiba, é professor, filósofo e praticante de politeísmo de vertente grega. Ao longo dos últimos meses, nós viemos trocando umas ideias sobre práticas espirituais e descobrimos que temos muitas perspectivas em comum a respeito de como lidamos com questões como o dilema entre o reconstrucionismo histórico e a invenção nas tradições politeístas contemporâneas.

Colocando nesses termos, pode parecer um pouco complexo, mas é um problema que se apresenta a todo praticante que pretende trabalhar com a prática e divindades de algum panteão que não possui mais uma tradição contínua desde a antiguidade – sob o risco de acabarmos incorporando acrítica e inconscientemente certos pressupostos problemáticos que, ao longo prazo, podem acabar por minar a prática e torná-la insustentável. Por isso, achamos que seria interessante trazer essa discussão para O Zigurate na forma de um guest post (nosso primeiro!), assinado pelo Petter.

No mais, vocês podem acompanhar as suas reflexões no seu perfil do Blue Sky, Teurgia Crítica (@teurgiacritica.bsky.social), em sua newsletter Noopositive, no Substack, (link aqui) e receber notícias sobre suas postagens e cursos no Canal do Telegram (t.me/teurgiacritica).

Politeísmo sem caixas pretas — por um politeísmo crítico

0. Introdução

A história do paganismo contemporâneo no ocidente pode ser dividida em dois grandes paradigmas ou “programas”, a superação destes é uma tarefa necessária para a elaboração de uma perspectiva politeísta crítica.

Der Wanderer über dem Nebelmeer, pintura de Caspar David Friedrich (1818). A imagem prototípica para se usar ao se falar de romantismo

1. Paganismo Romântico

Utilizo a categoria “paganismo romântico” para designar um continuum de movimentos neopagãos situados em contextos históricos muito diversos, (como o do nacionalismo romântico do século XVIII e a contracultura dos anos 60) mas que possuem semelhanças estruturais importantes em seu modo de lidar materialmente com o legado pagão antigo. Essa categoria contraria a distinção de Hanegraaff (p77,1996), que considera que as diferenças de teor político e conjuntural entre o neopaganismo pré- e pós- Segunda Guerra implicaram em uma mudança substancial entre os movimentos religiosos destes dois momentos. Sem negar as diferenças, afirmo que é possível reconhecer a continuidade relevante de uma série de práticas, abordagens, tendências teológicas e mesmo uma “cosmovisão” que nos permite identificar um objeto relativamente unificado.

O lastro próprio dessa unidade repousa em um fenômeno mais amplo, o chamado “romantismo anticapitalista” tipificado por Lukács e desenvolvido por outros autores dentro da tradição marxista como Kurz, Postone e Lowy. O paganismo romântico faz parte desse tipo de reação à sociedade industrial capitalista, corretamente diagnosticando no núcleo dessa forma social a liberação inaudita de um novo grau de abstração e fluidez que a distinguia de formas anteriores de sociabilidade. Mas, ao invés de identificar tais características “na dimensão de valor das formas sociais”, como nos diz Postone (2012), acaba por projetá-la em uma nova mitologia amparada em um oposição espiritual onde a comunidade orgânica (Gemeinschaft) antiga idealizada se contrasta com a sociedade moderna de indivíduos atomizados (Gesellschaft), do mesmo modo que o Concreto se opõe ao Abstrato, o Autóctone ao Nômade, o Natural ao Artificial, o Sagrado ao Profano, a Intuição ao Cálculo Racional, o Reino da Qualidade ao Reino da Quantidade, a Ereignis ao Gestell, e em alguns casos perigosos, o “Indo-Europeu” ao Judeu.

Há disputas dentro do campo marxista a respeito da natureza reacionária ou “mista” desse tipo de fenômeno. Michael Löwy chega a classificar quatro tendências distintas de romantismo anticapitalista (passadista, conservador, desencantado e revolucionário), argumentando que a tendência romântica revolucionária não estaria necessariamente presa a uma nostalgia da Gemeinschaft perdida (p16, 1990). De qualquer modo, nossa análise do paganismo romântico terá como início uma certa gama de elementos transversais a esses diversos movimentos, sendo o elemento político algo a ser desdobrado problematicamente a partir dos mesmos.

1.1. Em Busca da Ur-religião

A busca por uma sabedoria ancestral e a projeção da mesma em civilizações mais antigas não foi uma novidade renascentista e moderna, mas esteve presente na antiguidade desde a reverência de Platão ao pensamento egípcio, passando pela relação do neoplatonismo e o pensamento Caldeu ao fenômeno renascentista do “orientalismo platônico” renascentista tal como caracterizado por Hanegraaff em sua obra “Esotericism and the Academy” (2012). A mitologia comparada tampouco é nova, as diversas formas de interpretatio eram comuns na antiguidade, estabelecendo múltiplas relações de identidade concorrentes entre diversos panteões a depender dos atributos das divindades que eram enfatizados pelo gesto comparativo. Porém, tal como o trabalho e o dinheiro ganham um novo sentido na sociedade moderna, a busca por uma sabedoria ancestral e o gesto comparativo são articulados de uma forma completamente nova, e adiantando um juízo de valor, expandido em um novo contexto os elementos mais problemáticos herdados de seu contexto antigo.

A premissa injustificada de que a antiguidade de um conhecimento garante sua verdade era ao menos lastreada em uma civilização realmente existente, cujos herdeiros ainda passeavam entre as civilizações mais jovens. A solução foi inventar a pátria dessa sabedoria ancestral (que em muitos casos correspondia à sua própria) habitante de um glorioso passado remoto que antecede um esquecimento desse saber e que hoje retorna de forma renovada aos herdeiros dessa ancestralidade mítica. O método comparativo deixa de ser um meio pelo qual se estabelecem relações entre Deuses, uma tradução relativa e circunstancial de seus nomes, para se tornar um meio pelo qual esse passado pode ser inventado enquanto um Gesetztsein (ser-posto) que se vende como um ser-aí.

A comparação entre dois teônimos sempre revelava um resíduo óbvio, não só por causa dos atributos dos Deuses que não cabiam no gesto comparativo específico, mas também pelo fato de que este deveria lidar com outras séries de comparações específicas de cada um dos Deuses, que através de outros jogos de associações, estabelecem equivalências igualmente plausíveis. Não era incomum a ideia que os mesmos Deuses incorporam diferentes nomes a depender do povo que os venera, mas ela permanecia como um ideal de tradutibilidade que geralmente se manifestava de forma incompleta, tendo que aceitar uma pluralidade de equivalências incapaz de se dissolver em uma tabela unificada de correspondências, falseando a si mesma enquanto promessa irrealizável. Podemos dizer que a comparação deixava a diferença entre os Deuses e o elemento de conexão entre ambos mais explícito, encontrando através daquela identidade relativa uma conexão entre as divindades. Esse elemento conectivo, o atributo comum, se torna um elemento redutivo no paganismo romântico.

A ansiedade histórica própria da modernidade se soma ao fato de que os Mitos não são, nesse novo contexto, realidades contemporâneas e vizinhas que se utilizam da comparação como uma forma de estabelecer laços, mas objetos inertes, cujo valor é avaliado não só por um sujeito alheio a essas realidades, mas também por uma métrica que se exterioriza a partir de um processo onde suas próprias imagens se tornam alheias a si. Mesmo que discursivamente possa se apelar à transtemporalidade do discurso mítico, é precisamente esse elemento que é mutilado pelo desejo romântico, alienado de suas próprias condições históricas, e acaba por operar um segundo processo de alienação, ignorando o abismo entre sincronia e diacronia que separa o seu gesto daquele próprio dos antigos. Nesse sentido, o distanciamento (a qualidade do “alheio”) nem é propriamente o problema central, mas a ignorância desse distanciamento que se deflagra na ilusão de uma proximidade radical, que o torna incapaz de lidar com o oceano de contingências materiais que sustenta o acesso à essa transtemporalidade.

Não há dúvidas que a mitologia comparada moderna possui seu valor, mas este é localizado em um contexto onde o gesto comparativo produz um saber devidamente relativo, cujas conclusões se dão em um escopo muito distinto da teologia. A literatura comparada, os estudos da religião e a psicologia arquetípica podem se beneficiar de um reducionismo metodológico em relação a tônica que define os objetos de seu campo, mas isto não pode ser ingenuamente transposto ao campo teológico tal como feito pelo paganismo romântico. Ressacralizar o mundo através do uso redutivo de arquétipos psíquicos ou estruturas metafísicas impessoais é como esfriar um folha de metal através de sua exposição ao fogo. O alheamento do pagão romântico em relação às próprias condições de sua posição se manifesta claramente na tentativa de superar o que ele chama de “materialismo” através de uma estrutura que, no final das contas, reproduz na relação entre os Deuses e suas propriedades a  mesma lógica da sociedade moderna de mercado onde “…as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias.” (MARX, Karl p219). É por esse motivo que a vitória dos elementos redutivos em relação aos elementos conectivos será mais explícita naquelas correntes mais cegas em relação a sua condição moderna e mais obcecadas por uma pureza metafísica tradicional; autores como Julius Evola são incapazes de reconhecer o quão vulgarmente “materialista” são seus apontamentos sobre o caráter “puramente técnico” dos ritos (1995, p43) e impessoal da sua imaginária tradição primordial (p45), além de seu juízo sobre o caráter “degenerado” da devoção politeísta (p42).

1.2. A Pseudo-História

Destituída da precisão científica da Historiografia e da ambiguidade poética do Mito, onde simultaneamente verdades são ditas sob a forma de mentiras e mentiras sob a forma de verdades, a pseudo-história se torna o meio pelo qual muitos buscarão lastrear a autenticidade de sua “Tradição”. A vergonha da novidade se torna motor de um ciclo patológico de criação no qual o elemento propriamente “criativo” de uma nova doutrina deve ser encoberto através da invenção de sua própria antiguidade. Tais invenções geralmente espiritualizam teorias científicas de sua época, como continentes perdidos hipotéticos, teses antropológicas e até mesmo teorias raciais.

Claramente não estou falando da influência ou inspiração que uma dada leitura do mundo natural possa ter na composição de um mito – a saturação semântica dessa influência ou inspiração geralmente a torna outra coisa, mais longeva que uma afirmação que simplesmente possa ser tomada como verdadeira ou falsa. O dado científico mistificado pelo paganismo romântico é uma tentativa de sustentar a validade de suas narrativas para além (ou na verdade, aquém) do registro mitológico, tornando suas verdades sagradas rapidamente caducas, ao passo que seus lastros profanos são superados. Teses como o Mutterrecht de J.J.Bachoffen, hoje datada, influenciaram o imaginário de correntes pagãs politicamente divergentes como evolianos e wiccanos, cada um deles criando sua própria versão mitificada do embate entre os supostos povos matriarcais da antiga Europa e os patriarcais “ários”. O caldeirão de cada um irá obviamente receber diferentes ingredientes; se o evolianismo em sua “Síntese da Doutrina da Raça” invoca uma amálgama entre a tese de uma Urheimat polar indo-europeia conjuntamente com um imaginário de inspiração provavelmente teosófica (com direito a Lemúria e outras tradições milenares inventadas no século 19), a Wicca irá tomar a hipótese do “culto bruxo” de Margaret Murray como referência para o  “antigo culto bruxo” criado por Gerald Gardner. Em ambos os casos, a despeito de suas diferentes ressonâncias ideológicas, temos uma mitomania destituída de um esforço consistentemente “mitogônico”. A necessidade de instituir a legitimidade de seu discurso no terreno histórico torna a condição histórica desse discurso novamente invisível para si mesmo, unindo o pior da mitopoética com o pior da narrativa histórica.

El Aquelarre, ou O Sabá das Bruxas (1798), de Goya

De um ponto de vista político, é correto dizer que fenômenos genealogicamente ligados a Wicca como a “Goddess movement” foram inegavelmente progressistas no momento histórico que surgiram, mas o caráter cristalizante de sua mitopoética acaba por auxiliar a reificar determinadas contingências que podem tornar datado seu potencial emancipatório. O mito do matriarcado primitivo e de uma deusa unitária essencialmente ligada a um modelo muito específico de constituição metabólica humana tem sido um obstáculo considerável para a inclusão de pessoas trans, não sendo infelizmente incomum que alguns praticantes defendam explicitamente a exclusão dessas pessoas (como no caso da teóloga Ruth Barrett).

2. Reconstrucionismo politeísta.

Assim como o paganismo romântico, os reconstrucionistas politeístas também parecem fazer coincidir autenticidade, verdade e antiguidade. Porém, essa busca pela autenticidade e pela reconexão com as tradições ancestrais é feita de uma forma muito distinta da dos pagãos românticos, sendo em alguma medida uma espécie de reação ao excesso criativo dos mesmos e sua visão fantasiosa do passado. Eles irão buscar resgatar os cultos religiosos e as crenças das culturas pré-cristãs, se especializando geralmente em uma delas (por exemplo, no politeísmo grego, romano ou celta) e realizando um estudo cuidadoso de textos antigos, arqueologia e outras fontes para reconstruir as práticas religiosas da época.

Em um sentido geral, o reconstrucionismo politeísta abriu a possibilidade de se libertar de uma série de elementos herdados do framework da tradição esotérica ocidental (tanto no âmbito prático como também teológico) em nome de elementos melhor amparados nos contextos nos quais determinadas divindades eram veneradas no mundo pré-cristão. A valorização da ortopraxia em relação a ortodoxia também permitiu uma maior liberdade de compreensão destas mesmas práticas, não recorrendo mais a modelos cosmológicos antes vendidos como “chaves universais”, mas que pouco tinham relação com as mesmas (como a quase onipresente Cabala hermética no contexto esotérico). Não se trata mais de possuir a “sabedoria iniciática” correta, e sim realizar a “prática correta”.

Como no caso do paganismo romântico, também há debates dentro do reconstrucionismo politeísta sobre sua natureza política. Alguns reconstrucionistas podem adotar uma abordagem mais conservadora, imaginando a religião antiga como um modelo para uma sociedade tradicional e hierárquica (geralmente de forma completamente anacrônica e dessituada), enquanto outros podem adotar uma abordagem mais progressista, adaptando as tradições antigas aos valores contemporâneos. De qualquer modo, o desejo de autenticidade do reconstrucionismo politeísta irá criar uma outra ordem de problemas, que muitas vezes poderão fazê-lo colapsar nos vícios que este busca evitar.

2.1. Um Protestantismo Pagão.

Um avanço notável do reconstrucionismo é o estabelecimento de uma epistemologia religiosa, a qual irá classificar e discernir os diversos graus de validade de uma prática ou de uma narrativa mítica. O critério de classificação parece ser simples: algo é mais válido na medida em que este possui um maior embasamento histórico. Deste modo, irão se distinguir práticas e narrativas que fazem parte da estrutura geral da religião e aqueles que surgem da necessidade de preencher as lacunas que usualmente existem no registro histórico. Tudo isso seria realmente simples se toda a “história” já estivesse sido estabelecida de uma vez por todas.

A História, enquanto disciplina em movimento, é um campo em constante debate, movimento e reatualização. Reconstruir uma religião a partir de uma historiografia feita nos dias de hoje pode nos dar a ilusão que realmente estamos revitalizando de forma autêntica a antiga religião, porém novas evidências podem demonstrar que aquela historiografia na verdade estava incorreta. Muitas teses historiográficas foram centrais na emergência de grupos do paganismo romântico, e hoje suas crenças soam implausíveis, simplesmente porque os enunciados que eram plausíveis em sua época foram cristalizados na forma de sua doutrina e prática até hoje.

Em certa medida, o reconstrucionismo parece ser uma manifestação pagã do espírito protestante, buscando a verdade através da letra da palavra sem a intermediação da fantasia dos homens. Assim como os reformadores protestantes buscaram uma interpretação “pura” da fé cristã através da análise direta das Escrituras, os reconstrucionistas buscam uma compreensão “pura” das religiões antigas através da pesquisa histórica e arqueológica. Porém, há uma patente desvantagem: não há livro sagrado e sim no máximo papers acadêmicos sagrados, os quais eventualmente são substituídos uns por outros de forma indefinida. Ancorar a autenticidade de uma religião em um ramo do saber secular, naturalmente indiferente ao elemento propriamente religioso, não parece ser uma boa ideia.

Não é incomum que reconstrucionistas reifiquem categorias históricas criadas com objetivos puramente pragmáticos. Fronteiras úteis que dividem de forma mais ou menos arbitrária frações do tempo e do espaço para facilitarem a vida do investigador acadêmico se tornam parâmetros da reconstrução religiosa, fazendo emergir determinadas formas de conceber a prática politeísta que paradoxalmente não teriam consistência histórica. Casos extremos podem ser vistos na recusa generalizada do sincretismo (por causa da reificação dos limites étnicos e civilizacionais que utilizamos para nossas especializações acadêmicas) e às vezes até a tomada de um intervalo histórico muito específico e arbitrário (por exemplo, a Grécia do período clássico) como régua e cânone da prática religiosa.

Ademais, o enfoque excessivamente arqueocentrado destes grupos muitas vezes pode promover uma insensibilidade aos descendentes dos povos que forneceram os nomes dos Deuses cultuados, ao ponto de alguns deles se considerarem “mais gregos que os próprios gregos”1. A importância de uma prática religiosa consciente de suas continuidades e descontinuidades históricas é algo a ser efetivamente buscado, porém, lastrear o sentido da religião estritamente neste terreno parece ser um caminho pouco adequado, ainda mais quando a inspiração histórica é entendida de uma forma ingênua como uma literal reconstrução.

2.2. A Gnose Pessoal Não Verificada dos Antigos.

A distinção, necessária e honesta, entre o que foi possivelmente a prática ancestral e o que são interpretações modernas ou desenvolvimentos de revelações pessoais é algo necessário. Para a epistemologia religiosa do reconstrucionismo, ela é crucial. Sem essa distinção é impossível determinar o que seria válido em geral (a prática histórica reconstruída) daquilo que possui uma validade relativamente individual, a chamada “Gnose Pessoal Não-Verificada” (UPG). Como podemos perceber, a história não somente informa a prática mas também é seu critério de validade e verdade, na medida que a “verificação” de uma determinada revelação pessoal ou comunitária depende necessariamente do fato de e a mesma possuir algum tipo de precedente histórico.

Obviamente tivemos aqui um progresso em relação ao acriterioso paganismo romântico – uma epistemologia religiosa pode ser muito útil para separar o joio do trigo (e toda pessoa envolvida em religiões sabe que há muito joio). De qualquer modo, uma epistemologia religiosa cujo critério de validade repousa naquilo que já foi feito, não tem qualquer possibilidade de lidar com aquilo que ainda não o foi. Se o medo da novidade se manifestou no paganismo romântico na forma da falsificação do passado, no reconstrucionismo ele se manifesta na contenção do futuro, impedindo que a religião possa se tornar algo vivo e não alguma espécie de puzzle de recriação histórica. Será que os Deuses cansaram de falar e estão submetidos aos fragmentos daquilo que já falaram?

Ademais, uma epistemologia religiosa desse tipo também poderia facilmente trocar os pés pelas mãos. Podemos imaginar um cenário onde o único fragmento que chegou até nós de uma determinada prática religiosa tenha sido escrito por um sujeito muito inventivo e idiossincrático que criou uma interpretação muito própria da mesma, e hoje os praticantes da religião reconstruída o tomarão como regra sem nunca saber que boa parte das coisas ali escritas só existiam em sua imaginação individual. Aqui não só é o caso de que a antiguidade não deve ser automaticamente critério de autoridade, mas também que ela não deve ser o limite fundamental da imaginação religiosa. Do contrário, o futuro já é passado.

Toda a crítica feita até aqui concedeu que a distinção entre práxis e doxa pressuposta pelo reconstrucionismo seria funcional. O enfoque na “ortopraxia” em detrimento da “ortodoxia” inicialmente parece ser uma boa ideia; ela impede a coagulação doutrinária e teológica promovendo um pluralismo de posições que se assentam em uma prática comum, mas há uma profunda ingenuidade em acreditar que a distinção entre o domínio prático e o domínio discursivo seja tão rígida. Toda prática é subdeterminada (no sentido carnapiano-tardio da relação entre termos teóricos e termos observacionais) por um contexto discursivo, o qual determina e informa sua realização, de modo que interpretações distintas de seu sentido implicarão retroativamente em práticas igualmente distintas, pois animadas por entendimentos e propósitos diferentes. O estabelecimento de uma prática rígida (“orto”-praxia) não só é incompatível com a pluralidade de teologias buscada, mas também com a própria pretensão da “reconstrução”: estamos em um contexto narrativo amplo muito distinto daquele dos antigos.

O reconstrucionismo politeísta parece ter buscado na História um lastro capaz de o proteger das arbitrariedades humanas, sem perceber que a História é nada mais que a sucessão temporal de tais arbitrariedades. Toda solidez é construída, e toda construção está impregnada do suor e do sangue humano, mesmo quando o divino através destes se manifesta. Talvez seja necessário reconstruir nossos pressupostos teóricos antes de prosseguir reconstruindo uma religião.

A Estátua da República (1929), de Ángelo Zanelli, representando a deusa grega Atena, em El Capitolio, Havana

3. Por um Politeísmo Crítico.

Um importante insight de uma tradição intelectual que se inicia em Kant e que se expressou na figura dos pensadores da chamada “Teoria Crítica”, é o da distinção entre razão (Vernunft) e compreensão (Verstand), ou seja, de uma racionalidade “ativa” e de uma racionalidade “passiva”. A racionalidade ativa é “crítica”, pois permite questionar as condições nas quais ela mesma se desempenha e abre a possibilidade de sua própria reconstrução.

Enquanto o paganismo romântico se perde na mitificação de um passado idealizado e o reconstrucionismo politeísta se limita ao escopo do que é historicamente comprovado, ambos enfrentam um desafio comum: como manter uma religião viva, relevante e significativa no mundo contemporâneo? É necessário construir uma abordagem capaz de reconhecer a importância da reflexão constante sobre as condições teológicas, históricas, sociais, antropológicas e políticas que moldam a religião politeísta em seu contexto atual e que condicionam o sentido de sua prática. Devemos ter a liberdade de operar de forma criativa através dessas mesmas condições, reconhecendo, para além da ilusão da autenticidade, o valor positivo de sua própria novidade (conscientemente afirmada).

É importante frisar que a crítica aos paradigmas anteriores não é um ataque aos seus praticantes ou mesmo um ataque voltado necessariamente às religiões que estão dentro desses paradigmas. A crítica deve ser lida como um convite para que estas tradições possam reconhecer e ultrapassar seus próprios limites.

O que proponho aqui é um terceiro paradigma ou “programa” para a construção consciente de uma religiosidade politeísta. Toda Aufheben conserva em si algo de seus antecessores – nesse sentido talvez deveríamos reconhecer dois elementos dos programas anteriores que, se libertos de seu framework nativo, poderiam ter seu potencial plenamente desenvolvido: 1) A criatividade mitopoética dos românticos e sua abertura para narrativas ainda não contadas; 2) A consciência reconstrucionista de que a religião é, em algum sentido, uma constante engenharia do Sagrado que consiste em um diálogo permanente com os Antigos; Estes dois elementos, libertos da melancolia do “Retorno”, podem nos propiciar a esperança de que o pensamento pagão tem direito não só a um passado, mas também a um futuro.

Uma meta-epistemologia pluralista (talvez inspirada na teoria dos Programas de Pesquisa de Lakatos) poderia nos fazer imaginar um cenário onde diversas teologias politeístas críticas formem uma ecologia teológica, onde cada framework estabelece de forma aberta os critérios de sua própria “Eupraxia” e “Eudoxia”, se esforçando na articulação de suas ambições teológico-práticas com o terreno dinâmico do Devir e do diálogo com os Antigos, sem cair em espirais dogmáticas ou nas antigas reificações. Um espaço de experimentação, informada e responsável. O que em alguma medida já existe, porém ainda não possui um nome próprio.

(Texto de Petter Hübner)

  1. APOKATANIDIS, Katerina. When Greece is not Ancient: Colonialism, Eurocentrism and Classics (link aqui). ↩︎

Bibliografia:

EVOLA, Julius. Revolt Against Modern World. Rochester, Inner Traditions, 1995.
HANEGRAAFF, Wouter J. Esotericism and the academy: rejected knowledge in western culture. Cambridge, Reino Unido, Cambridge, 2012.
HANEGRAAFF, Wouter J. New Age Religion and Western Culture: esotericism in the mirror of secular thought. Leiden, BRILL, 1996.
LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O processo de produção do capital. 2ª. Edição. São Paulo: Boitempo, 2011.
POSTONE, Moishe. “Antissemitismo e nacional-socialismo” – Moishe Postone, in Sinal de Menos, No. 8, 2012, pp. 14-28.

1 comentário Adicione o seu

  1. Avatar de Carmo Carmo disse:

    Boa tarde, gostaria de poder fazer uma pergunta: é errado cultuar e trabalhar magickamente com Deuses pagãos como egípcios ou sumérios e ainda assim trabalhar com salmos, anjos, ou santos católicos. Peço desculpas se a pergunta é boba, me interesso por esses caminhos mas não quero ser desrespeitoso com nada nem com ninguém, desde já obrigado pela atenção.

    Curtir

Deixar mensagem para Carmo Cancelar resposta