O Saber e o Sentir na prática oracular, por Sara Emiliano

Falar de tarô nas redes sociais é sempre complicado. Há uns extremos muito curiosos: de um lado, tem quem pareça trabalhar de modo puramente intuitivo, que tira as cartas e dá a resposta, mas quem vê a carta e a resposta às vezes não consegue ligar uma coisa à outra (já vi acontecer bastante, e é sempre motivo de piada quando alguém prevê um futuro positivo com um 9 de espadas). Do outro lado, tem um pessoal que parte de uma perspectiva inteiramente fisicalista e tira de cena o lado mágico e intuitivo (e essas pessoas às vezes inventam de fazer leituras sobre espiritualidade, o que não faz o menor sentido, mas deve pagar as contas, não é mesmo?). E, claro, entre um extremo e outro, há muito o que se falar.

Por isso, trazemos hoje um guest post bastante especial, cortesia da Sara Emiliano. A Sara, assim como eu, tem um pé na magia e outro no mundo acadêmico, e nos confronta neste texto com os dilemas da experiência mágica, dos quais o tarô, querendo ou não, faz parte. Como ela vai deixar claro, o método puramente intuitivo abre margem para todo tipo de fantasia – e se perder num mundo de fantasia é um risco ocupacional para todo mundo que trabalha com oráculos e esoterismo, – mas uma redução do tarô ao mero saber, ao acúmulo de conhecimentos em torno das figuras, sua gramática e história, não apenas mata o que há de mágico no trabalho oracular como, no limite, leva à conclusão de que esse trabalho é impossível. E é isso, né, escrever sobre magia é sempre se debater com o fato de que estamos falando de algo que, para uma maioria de pessoas, não existe. Mas todo mundo sai correndo para procurar uma cartomante ou uma benzedeira quando as coisas apertam.

A Sara é cartomante, taróloga e professora de tarô. Vocês podem encontrá-la nas redes sociais, no Instagram (@sarekinha), BlueSky (@sarekinha.bsky.social) e no seu canal do Telegram (t.me/sarekinha). A Sara é mais uma das profissionais que nós aqui d’O Zigurate recomendamos não apenas como oraculista, mas também como professora.

Versão colorizada da gravura “O oráculo de Delfos”, de Henri Motte (1846 – 1922)

O Saber e o Sentir na prática oracular

De tempos em tempos o espectro do dualismo cartesiano volta a nos assombrar e turvar nosso julgamento sobre determinadas questões, e o tarô, como parte de um fenômeno histórico e humano, é também sua vítima. Vez ou outra ressurge um conflito no meio oraculista acerca de uma validação oracular da qual ninguém precisa, mas que, no entanto, muitos se veem (ou se colocam) como reféns. Refiro-me aqui ao conflito intuição-conhecimento, dualidade essa que causa bastante polêmica desnecessária, e é sobre isso que vou tratar.

Susan Chang certa vez disse em uma entrevista ao podcast Liber Ohio1 que seu objetivo com o tarô é poder dizer qualquer coisa com ele. Trago esta citação pois penso que ela sintetiza muito
bem a função instrumental do tarô, ou seja, comunicar, dizer, expressar. Nesse sentido, o tarô pode ser tomado como uma forma de linguagem, mais especificamente, linguagem simbólica. É através dos símbolos impressos e implícitos nas cartas que fazemos conexões e associações de todo tipo e essas nos permitem mergulhar numa determinada situação, olhá-la por outros ângulos, buscar conselhos ou antever possíveis desdobramentos futuros.

Toda linguagem natural só é funcional na medida em que os conceitos e enunciados sintetizam sintaxe e semântica, isto é, forma e conteúdo. Pensando no tarô na perspectiva de uma forma de linguagem, a ideia é a mesma. O tarô possui também sintaxe e semântica próprias, sua forma e seu conteúdo. A forma sintática (e até etimológica!) do tarô pode-se dizer ser o conhecimento, o saber teórico que dá forma ao conteúdo semântico da mensagem. E a mensagem, o conteúdo semântico do tarô, é dada pela intuição do oraculista, ou seja, pelo sentir. Logo, a estrutura “linguística” do tarô é a síntese entre sentir e saber, onde o saber teórico dá forma ao sentir, e o sentir preenche o saber.

Podemos fazer outra analogia nesse sentido (indo um pouco mais longe e saindo da área) parafraseando Kant: “conceitos sem intuições são vazios, intuições sem conceitos são cegas”. Relevando as nuances conceituais próprias da terminologia filosófica, (na qual intuição significa percepção sensível), podemos pedir licença para, como dito acima, fazer uma analogia cujo único intuito é lançar luz sobre a dicotomia saber-sentir que faz do tarô seu prisioneiro. E acredito que tanto a emancipação do tarô quanto o esclarecimento do tarólogo, ou do oraculista em geral, não resida sobre um ou outro, mas sobre a síntese entre ambos. Por um lado, se tirarmos do tarô todas as suas características metafísicas como a intuição, resta apenas o conhecimento teórico, e, nesse caso, seria mais coerente abandonar o trabalho oracular e passar a fazer ciência. Mas, por outro lado, se tirarmos do tarô todo o conhecimento teórico, estaremos pisando num campo onde toda e qualquer coisa é permitida e logo seremos engolidos por um sem número de quimeras da imaginação. Ou seja, não se faz metafísica sem metafísica, mas a boa metafísica tem regras.

Saber

O campo do saber como competência oracular tem seus próprios problemas. A começar pelo fato de que o tarô é um assunto bastante popular, então há todo o tipo de pessoas dizendo todo o tipo de coisas, o suficiente para nos depararmos com infinitas contradições. E como selecionar o que faz ou não sentido nesse mar de informação?

Para formar uma boa base teórica, é interessante buscar a diversidade. É claro que você pode, assim como eu, escolher entre escola inglesa ou francesa e permanecer nesse território, mas escolher apenas um livro ou apenas um autor, colocá-lo debaixo do braço e tê-lo como o pináculo do conhecimento é simplesmente contraprodutivo. É claro que temos preferências e muitas vezes nos identificamos mais com um ou outro autor, mas o problema reside em fechar os olhos para todo o resto. A diversidade abre espaço tanto para ideias novas – interessantes e estimulantes –, quanto para questionamentos que podem nos trazer respostas inesperadas, fazendo-nos trilhar outros caminhos.

O trabalho de construir seu corpo de conhecimento é longo e não tem muito glamour, como bem representado no 8 de Ouros.

E por falar em estímulo, estudar qualquer tópico mágico, místico e oculto é algo que fazemos porque queremos. Então, não acredito que haja muito valor no que diz respeito ao desenvolvimento intelectual seguir cegamente a seleção, recomendações – e proibições – de gurus digitais com relação a livros, cursos etc. Boa parte do que torna esse tipo de estudo instigante é ir descobrindo coisas por conta própria e abrindo seu caminho. Com senso crítico, interpretação de texto e uma dose saudável de ceticismo desenvolvemos autonomia intelectual.

Ainda falando de autonomia, a escola inglesa de tarô nos traz um problema todo especial: o uso de correspondências. Esse é um assunto que, a meu ver, é encarado de forma equivocada, visto que assim que abrimos uma fresta da porta da Golden Dawn, uma enxurrada de cabala hermética passa por ela. Isso tudo é jogado na nossa cara e tido como uma obrigatoriedade.

O infame 777, amplamente conhecido por suas inúmeras tabelas de correspondências.

É claro, vale lembrar que o Waite-Smith, o Thoth, ou mesmo os tarôs próprios da Golden Dawn foram feitos com base em cabala hermética, alguns mais que os outros. O que não significa que é só isso que compõe esses baralhos ou que este assunto seja um pré-requisito indispensável para utilizá-los.

Vamos pensar da seguinte maneira: cada tipo de correspondência serve como uma camada adicional de significado. A mais basal é, com certeza, o aspecto imagético. A partir dele, vamos adicionando teoria das cores, os números, os 4 elementos, os planetas, signos, decanatos, as sefiroth, os caminhos da Árvore da Vida, etc, e formando conexões entre essas camadas. E nenhuma dessas é mais importante que olhar para a carta e prestar atenção ao que está desenhado lá.

Sistema de correspondência algum é obrigatório. Eles servem para auxiliar nossa capacidade interpretativa através da conexão de informações, mas alguém que lê exclusivamente para si e não tem um interesse especial no tarô pode ficar apenas na dimensão das imagens e isso é o suficiente.

Porém, ler os livros, saber a história e decorar as tabelas não faz um oraculista competente. A leitura de qualquer oráculo baseada apenas em conhecimento teórico e informação acaba se tornando vazia. Não importa quantas camadas de significados sejam aplicadas, as conexões desse corpo de conhecimento sobre a carta em relação à pergunta feita devem ser permeadas por um grau de intuição e sensibilidade. Afinal, uma xícara de chá de porcelana da Dinastia Ming é linda e valiosa, mas, vazia, não nutre o corpo.

Sentir

Falar de intuição é difícil. Na literatura ocultista é complicado encontrar esse assunto sendo falado com profundidade e realmente definindo o conceito para além de “coisas que você sente”2. Já vi até mesmo livros de tarô tratando o uso da intuição em uma leitura como o simples abandono dos manuais, e não é bem assim.

Além disso, por muitas vezes a intuição se manifestar na forma de um pensamento, cunhou-se o termo “as vozes da minha cabeça”. Eu entendo que a tendência é isso ser dito em tom de brincadeira, mas dá a entender que intuição é basicamente a mesma coisa que um pensamento intrusivo ou algo do tipo, e aqui está o alvo perfeito para falácia do espantalho. A partir daí, temos o descrédito deste componente tão importante que, quando não é tratado como um mero fenômeno psicológico, é descartado como algo que interfere com a leitura oracular. Considero isso um erro categórico e vou tentar demonstrar o porquê.

Já tendo citado um tópico filosófico, vou desenvolver um paralelo. Como mencionado nos parágrafos iniciais, uma definição de intuição bastante comum dentro desta disciplina tem o sentido de “percepção através da experiência sensorial”, ou seja, o que podemos ouvir, ver, tocar, e assim sucessivamente. Entretanto, o mundo oculto não é um objeto de fato material ou composto por itens materiais, portanto, não cai sob o campo da intuição como percepção sensorial. Não obstante, alguma percepção do mundo metafísico nós temos, caso contrário seria muito difícil justificar a existência de magia e prática oracular. Assim, acredito que o que dizemos ser intuição no campo mágico e oracular possa ser entendido como intuição mágica, e essa intuição mágica não está no escopo da percepção sensível, mas sim no da percepção metafísica.

Mas, se somos feitos de matéria sólida e perceptível através dos sentidos, como podemos acessar esse “outro lado”? Pois bem, há partes essenciais da constituição do que chamamos ser humano que, mesmo ancoradas ou emergindo da matéria, não são físicas. Os nomes variam dependendo da sua cosmovisão, mas essa parte imaterial do ser humano pode ser chamada de consciência, alma, espírito, corpo astral ou corpo energético, entre outros. Estando nessa condição de imaterialidade, é o nosso componente mais próximo do mundo oculto – também imaterial –, e, portanto, justamente aquele que tem condições de acessá-lo. Afinal, se matéria só interage de forma direta com matéria, itens imateriais só interagem de forma direta com outros itens da mesma natureza, ou seja, imateriais. No entanto, como nosso corpo físico está ligado a uma relação de interdependência e coexistência a este componente imaterial, por consequência acabamos experimentando sensações também físicas quando a interação ocorre, não muito diferente das reações corporais que temos causadas por fenômenos psicológicos como medo, ansiedade e etc. E é aí que ocorre o erro categórico ao qual me referi antes. As pessoas que apressadamente recusam a possibilidade desta intuição mágica provavelmente não pensam em termos das categorias material/imaterial, intuição sensorial/intuição metafísica, corpo/consciência-alma-espírito e suas respectivas possibilidades e condições interacionais a partir de suas propriedades. Dito isto, penso que não apenas deveríamos conceber a possibilidade da intuição mágica, mas, mais do que isto, aceitar sua necessidade como fenômeno real na prática mágica e oracular. Essa é a função conectiva exercida pelo Mago, um canal de manifestação entre o mundo espiritual e o físico.

Sacerdotisa de Delfos, pintura de John Collier (1891)

Claro que tudo isso que eu disse é apenas especulação na tentativa de entender e encorajar a discussão sobre o que chamamos de intuição na nossa área a partir de alguns empréstimos conceituais da filosofia. Considerando que não há algo parecido como uma fundamentação teórica realmente sólida do fenômeno da intuição própria da prática mágica e oracular específica de dentro da área (ao menos, não que seja de meu conhecimento), precisamos tentar nos virar com o que temos à disposição.

Usar da intuição é aplicar sua paisagem interna às cartas. Como funciona sua mente, suas energias, os guias que te acompanham, suas próprias experiências – tudo isso está presente quando se abre um jogo. É a sua parte imaterial alcançando o outro lado e trazendo pensamentos e sensações que precisam ser traduzidos para o consulente de forma inteligível. Quando tudo isso conflui numa leitura, é difícil dizer que intuição é apenas um fenômeno psicológico. Afinal, se fosse apenas leitura crua de símbolos, como justificaríamos a capacidade de previsão do futuro? Como justificaríamos a importância de uma leitura oracular? E por que simplesmente não substituiríamos a prática oracular pela prática terapêutica com um profissional qualificado da área da saúde mental? Utilizar a intuição não quer dizer ignorar a teoria, afinal, seria o mesmo que falar uma língua com puro sentimento e nenhuma gramática: ninguém conseguiria se entender. Mas adicionar a intuição à base teórica nos permite chegar a leituras diferentes de uma mesma carta que não estão nos manuais, ao mesmo tempo em que também não fogem deles. Um ótimo exemplo disso é minha querida amiga (e aluna) Juliana3 que, como uma pessoa versada em mitologia e paganismo nórdico, vê Odin no Pendurado. Não é uma interpretação alienígena à carta, mas não é o que possamos chamar de usual.

Importante também considerar que se fiar exclusivamente na intuição não cabe numa leitura oracular e abre espaço para simples projeção dos seus valores e visões de mundo… e isso pode facilmente descambar em especulação sobre a vida alheia livre, desregrada e sem embasamento.

O Sono da Razão Produz Monstros, de Goya.

Em conclusão, não podemos deixar nenhuma dessas competências de lado, pois ambas são necessárias para uma leitura fina e aprimorada. Esquecer o sentir é matar a magia do tarô, jogá-lo numa lógica academicista e transformá-lo num objeto de estudo científico que não serve como oráculo. Esquecer o saber é ignorar estruturas e regras bem estabelecidas em prol do que “parece correto” para você. Aquele que escolhe se aprofundar em qualquer oráculo precisa que ambas caminhem juntas e trabalhem em uníssono, ou sempre fará leituras vazias, rasas e frias ou cegas, especulativas e desconexas. A leitura de um oráculo se dá no ponto onde o saber toca o sentir. Portanto, é necessário fazer a devida síntese entre essas duas competências. Tomar o saber como a forma do sentir, e o sentir como o conteúdo do saber. É assim que se adquire fluência em tarô. Assim como uma língua não sobrevive e se propaga sem o fator cultural humano, o oráculo precisa tanto de suas regras “gramaticais” quanto do sentimento que aplicamos a essas regras. Assim seremos capazes de superar os dualismos inadequados que trazemos como herança em nossa cosmovisão e que já foram superados em tantas outras áreas que sacudiram de seus ombros a poeira de um mundo há muito deteriorado. É necessário questionar tais noções tão fixas e enraizadas e “despertar do sono dogmático”. Desconfie daqueles que têm muitas certezas, a convicção inquestionada aprisiona o pensamento e mata a autonomia.

(Texto de Sara Emiliano)

* * *

  1. Liber Ohio foi um podcast esotérico da Occulture Media que existiu entre 2016 e 2022. O episódio em questão se chama “Occulture 111: Susie Chang // Tarot Correspondences, Water Symbolism & The Dial of Fate” (link aqui) ↩︎
  2. Menção honrosa aos livros do Mat Auryn, especialmente o Arte psíquica do tarô, que abordam o aspecto da intuição de forma bastante didática e felizmente estão disponíveis em português ↩︎
  3. Também uma excelente oraculista e professora, que recomendo de olhos fechados a qualquer um. Seus perfis são @ordo_noctuae, no BlueSky e Instagram ↩︎

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