O problema dos “clássicos” do ocultismo

Se você entrar em qualquer livraria que tenha uma seção de livros esotéricos, é muito provável que encontre os seguintes nomes logo de cara: Alphonse Louis Constant e Violet Firth, mais conhecidos pelos seus nomes de guerra Éliphas Lévi e Dion Fortune, além de Aleister Crowley, Helena Blavatsky, William Atkinson (o provável autor anônimo do Kybalion) e outros. São autores estrangeiros que nasceram entre meados do século XIX e começo do século XX, escreveram obras de destaque, consagraram-se como clássicos e por isso são lidos até hoje. É de se imaginar que, para um iniciante, seria um bom começo ter a sua introdução ao ocultismo por aí, né? Para dar uma base. Bem, vocês devem já ter imaginado pelo título deste texto que eu tenho uma opinião contrária.

Eu nem gosto muito de falar disso, porque as pessoas se irritam, mas é uma pergunta que tem me aparecido repetidamente e por conta do meu curso sobre as correspondências do tarô eu andei lendo esse pessoal, por isso achei que era hora de dedicar um texto a esse assunto. Olha só, não entendam que eu esteja fazendo um ataque a esses ocultistas. Não tenho o menor interesse em perder tempo falando mal do trabalho alheio, especialmente de quem já morreu há décadas, e menos ainda em criar picuinha na internet com o fã clube – se você gosta deles, pode continuar gostando, não leve como um ataque pessoal. Só que tem uns problemas aí para o iniciante (não dá para fingir que não tem) e, como eu lido muito com iniciantes, se eles chegam até mim com um monte de ideia confusa por terem lido esses livros antes da hora, aí isso vira problema meu.

Então: não é que esses autores não prestem, não é que não haja nada de aproveitável neles em termos de sabedoria espiritual ou conhecimento prático. Não, isso tem lá1. É que é preciso ter um bom filtro para se chegar a essas coisas, e o iniciante não vai ter a capacidade de separar o joio do trigo, justamente porque isso vem com experiência. Essa afirmação não é subestimar o iniciante, nem tirá-lo de burro, mas acho que podemos concordar que o que define um iniciante é a falta de experiência. E, por experiência, não estou nem me referindo apenas ao repertório de leitura e às horas de voo, por assim dizer, mas ao trabalho interno de expansão de consciência que muita gente que se julga adepto, com diploma de Magus, Ipsissimus, Mestre Real da OCQ (Ordem do Caralho à Quatro), nunca chegou perto de fazer. Desse modo, qualquer conhecimento que esse iniciante hipotético venha a absorver desse material inevitavelmente virá contaminado – e não tem porque usar meias palavras aqui – com uma boa dose de pura bobagem.

Ilustração de Éliphas Lévi

Parte disso não é culpa desses autores, bom frisar. Tem material a que eles simplesmente não tiveram acesso, e aí por isso reproduziram o que imagino que fosse o senso comum de seu tempo. Alguns exemplos incluem: a lorota de que o tarô veio do antigo Egito, de que era um livro cabalístico usado ritualisticamente por sacerdotes (aliás, toda a Cabala deles é de terceira mão, já que a maioria desses ocultistas não tinha um conhecimento de hebraico que fosse além do alfabeto, e o que eles dizem tanto sobre Bíblia e Cabala quanto sobre o Egito precisa ser lido com um pé atrás2); todo o papo dos continentes perdidos de Mu, Lemúria e Atlântida que era bastante popular nessa época; a defesa de ciências espúrias (como a frenologia3); todo o entendimento sobre raças (o fin-de-siècle foi um momento de auge para o racismo científico); todo o entendimento deles de história da magia, religião e ocultismo.

Para ilustrar: quando Julius Wellhausen publica seus Prolegômenos à história de Israel, onde divulga seu conceito bombástico da hipótese documental da composição do Antigo Testamento, em 1878 (republicado depois em 1883), Lévi já estava morto fazia 3 anos. Gershom Scholem foi um contemporâneo, um pouco mais jovem, de Dion Fortune, mas ele só vai publicar o seu Major Trends in Jewish Mysticism (A Cabala e a mística judaica em português) seis anos depois de ela publicar A Cabala mística, um livro de que eu pessoalmente desgosto. Mesmo que ela conhecesse o trabalho dele, que foi responsável por fazer o mundo acadêmico levar o estudo de Cabala e misticismo a sério, as datas não têm como bater. Daí que ele, por exemplo, com certeza teria um troço com as definições dela de ocultismo e misticismo em seu Preparação e trabalho do iniciado (1930). Sobre a Cabala de Crowley também, Scholem mesmo é categórico: não passa de “highly coloured humbug” (o que eu traduziria na linha de algo como “abobrinhas das mais pitorescas”). E Aryeh Kaplan, que viria depois a produzir suas traduções comentadas do Sefer Yetzirah e do Bahir, além de popularizar práticas de meditação mística como a de Abulafia, ainda era criança nessa época.

Hoje a gente tem acesso fácil a obras de pesquisa acadêmica séria como A Cultural History of the Tarot, de Helen Farley, ou A história do tarô, de Isabella Nadolny, que vão apontar para as origens mais mundanas do baralho. Mas são livros que saíram mais de 100 anos depois da morte de Lévi, por isso, né, a gente dá um desconto… ele não tinha como saber que iam demonstrar que o tarô não veio do antigo Egito (prever o futuro é difícil, mesmo com instrumentos divinatórios). O mesmo vale para o jesuíta Athanasius Kircher que tenta decifrar os hieroglifos egípcios em seu Oedipus Aegyptiacus, no século XVII, e erra feio. Não é culpa dele que ainda não havia sido descoberta a Pedra da Roseta.

Só que, num livro que se apresenta como um tipo de revelação de conhecimentos misteriosos, com a Verdade Secreta Universal, como é o tom de todas essas obras, não tem muito espaço para esse tipo de patacoada. Aí de duas uma: o iniciante chega munido das informações mais factualmente verdadeiras, percebe que o livro está errado e conclui que é tudo bobagem (se errou isso, o que mais está equivocado?), aí joga fora o bebê com a água do banho – quais as probabilidades de essa pessoa decidir dar uma segunda chance e levar a literatura ocultista a sério depois disso? Ou, pior, a segunda opção é a pessoa chegar num completo deslumbre, achar que entendeu finalmente a chave de todos os mistérios (literalmente o título de um dos livros do Lévi) e começar a habitar uma realidade paralela em que o tarô veio do Egito, mas os egípcios na verdade eram descendentes dos atlantes (porque, imagina, que absurdo, um povo africano capaz de construir pirâmides) que foram geneticamente modificados por alienígenas Anunaki e, bem… daí para começar a acreditar em reptilianos que querem usar a vacina para acelerar a vinda do Anticristo é um pulo. Eu nem estou exagerando. Você pega o livro do Samael Aun Weor, por exemplo, de 1978, sobre tarô e Cabala, e essas bobagens de tarô egípcio entregue pelo anjo Metatron estão logo na primeira página. E quem foi discípulo dele? O “Mestre” Rabolu (risos), responsável pela palhaçada do planeta Hercólubus.

Imagem não relacionada.

De novo, não que eu ache que esses ocultistas clássicos sejam literalmente culpados por essa epidemia de espiritualidade conspiratória que se tem hoje (essa eu boto na conta do povo New Age), mas é fato que é preciso um certo discernimento ao tratar desse material mais antigo, um discernimento que é difícil de esperar do leigo e do iniciante. Se alguém está começando e você oferece algo para essa pessoa ler que vai pegar o que tem de útil aí, mas sem esse monte de lixo junto, o processo todo fica muito mais fácil. E é isso que os autores mais contemporâneos vão fazer, pelo menos dentre os que eu admiro4.

No mais, a impressão que se tem é a de que esse pessoal das antigas está muito mais interessado em fazer um misto de teologia, antropologia e psicologia freestyle do que em ensinar algo prático de fato. E é sempre um negócio meio insuportável, tipo um grande sermão, com um tom professoral, que eu particularmente acho intragável. O estilo é a cereja do bolo: um registro frequentemente empolado, mas sem aquela inventividade verbal que faz de alguém um bom poeta – Crowley, aliás, como poeta foi basicamente um Blake que não deu certo. Quando se soma tudo isso, é fácil de entender por que é que tem tão pouco conteúdo ocultista aproveitável por aí. As partes boas desses livros existem, mas são difíceis de extrair, ao passo que é fácil até demais reproduzir os seus vícios.

É por isso que, dos ocultistas do começo do século, o único que eu recomendo é o Franz Bardon5. Sim, tem algumas ressalvas (o tanto de gente que me pergunta se é mesmo obrigatório para o sistema dele tomar banho gelado…), mas a questão não é ele estar imune a todos os problemas do seu tempo. Ninguém está – e nós muito menos, bom deixar claro. Mas ele se distingue dos outros por se preocupar em ensinar coisas que você pode ir lá e fazer. E é aí que está: eu acredito piamente no poder transformador das práticas mágicas e espirituais – seja cantando mantras, seja invocando deuses, inteligências ou anjos. Mas, por mais que os estudos sejam importantes, essa transformação vem não de ler os livros, mas de botar a mão na massa.

Entendo que muito da prática desses ocultistas antigos (exceto no caso de Lévi, que foi um magista de poltrona, no geral) vinha de uma tradição de lojas fechadas ao estilo maçônico, e eles não queriam ou não podiam divulgar esse material – já foi um escândalo quando Crowley e depois Regardie vazaram esse conhecimento secreto. Por isso eu acho que foi verdadeiramente visionário da parte de Bardon construir um sistema de autoiniciação que qualquer pessoa pode pegar e botar em prática a partir dos seus livros. Muitos praticantes contemporâneos de ocultismo são praticantes “solitários” (apesar que eu prefiro usar o termo “independente”, em vez disso) e ele já na década de 1950 estava antecipando essa tendência.

No mais, tem os erros também, que são pontuais, mas perigosos. Em Dogma e Ritual, Lévi se confunde quando fala das três letras mães do Sefer Yetzirah. Elas são álef (א), mem (מ) e shin (ש). As duas últimas ele acerta, mas troca o álef pelo yud (e depois inclui o yud de novo entre as letras simples, de modo que o álef desaparece, o que me leva a crer que não foi uma troca intencional). Se você chega com esse conhecimento de antemão, dá para entender que foi provavelmente um equívoco, mas – mais uma vez – o iniciante não vai ter esse repertório. Não dá para esperar que ele tenha, não é exatamente algo que se ensina nas escolas. E eu perdi um pouco de respeito pela Dion Fortune quando ela relata em seu Autodefesa psíquica como uma tentativa da parte dela de gerar uma carta geomântica resultou na conjuração acidental de um espírito podre que empesteou o espaço com cheiro de ralo. Fortune é supostamente experiente e eu entendo que ela estaria relatando um causo de quando era mais verde, mas ainda assim, o que me pega é ela ter feito uma cagada dessa tentando algo tão básico, e ainda botar a culpa no sistema divinatório (“ai, porque os gênios da geomancia não são muito elevados”, ah, vá). É como um chef de cozinha tacar fogo na cortina tentando fritar um ovo e botar a culpa na frigideira.

Por esses motivos, não, eu não recomendo esses nomes para um iniciante e acho mais proveitoso uma abordagem que mistura a leitura dos bons contemporâneos com o material clássico – e aqui eu me refiro aos clássicos mesmo, anteriores ao século XIX, porque não apenas tem coisas aí que são aproveitáveis para o praticante contemporâneo, como também ler essas obras permite entender a sua influência posterior. No mais, via de regra, hoje elas costumam ser publicadas com acompanhamento de paratextos e explicações acadêmicas que permitem situá-las em seu contexto histórico. Isso inclui Platão6 e os neoplatônicos (sou admirador em especial de Jâmblico), o Corpus Hermeticum e os fragmentos da literatura hermética e gnóstica7; a Bíblia, apócrifos e a épica clássica; os livros de feitiçaria antiga como os PGM, o Sefer HaRazim (Livro dos Mistérios), Charba deMoshe (a Espada de Moisés), De Quindecim Stellis; além da obra dos grandes místicos e os principais livros cabalísticos (Sefer Yetzirah, Bahir, seletas do Zohar), místicos sufis, católicos e até mesmo protestantes, de Rumi a Abdullah Ansari até São João da Cruz, o autor anônimo de A nuvem do não saber e Jakob Bohme e Swedenborg. É bom em algum momento ler o Agrippa também, mas depois de adquirir o repertório prévio.

Se começar por aí, você vai ter uma perspectiva sobre o chamado esoterismo ocidental muito melhor do que lendo os ocultistas do século XIX e XX (e inclusive vai ter uma base para ler esses livros sem cair nas suas armadilhas). Vale lembrar ainda que, a contrapelo do que alega a quarta capa de Preparação e trabalho do iniciado, a tradição esotérica ocidental não possui uma linha de transmissão contínua desde a antiguidade até hoje, mas é uma linhagem fraturada, com momentos de ruptura, de obras circulando na clandestinidade e gente indo parar na fogueira, seguidos de retomadas e tentativas entusiasmadas de reconstrução que frequentemente vão invocar histórias fantasiosas que funcionam como mito (e eu sou a última pessoa que vai reclamar do poder de uma base mítica forte), mas não possuem qualquer validade histórica. Não é por acaso que muitos magistas do final do século XX e hoje passaram a olhar para outras tradições, para a bruxaria popular, o xamanismo, o Tantra, o taoismo, o sufismo e as religiões e práticas espirituais de matriz africana8 – e nisso acabaram soprando um novo alento numa tradição que precisava disso, justamente porque é esse tecido conjuntivo que dá consistência à prática e que acaba se perdendo nesse processo de transmissão interrompida. As obras desses ocultistas de que falamos podem ser vistas como uma parte desse processo, mas se não forem entendidas dentro desse contexto, aí servem menos para ter uma visão esclarecida da prática mágica e mais para dar margem à perpetuação de bobagens e dogmatismo.

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  1. John Michael Greer, por exemplo, faz uma leitura aprofundada, capítulo por capítulo, de Dogma e Ritual em seu blog. ↩︎
  2. Eu tenho um desgosto especial pelos momentos em que a Blavatsky afirma que o que tem de espiritualizado na tradição hebraica seria apenas cópia dos hindus. Vocês sabem no que isso vai dar depois, né. ↩︎
  3. A defesa da frenologia está no Lévi, sem brincadeira, tanto em Chave dos Grandes Mistérios quanto em Dogma e Ritual. ↩︎
  4. Tem várias figuras que entram nesse balaio, mas se eu tivesse que citar um único nome, seria o do Mestre Choa Kok Sui, fundador da Cura Prânica. Seus livros são especialmente acessíveis para iniciantes e todo mundo ficaria melhor se começasse a sua jornada com o Ciência da Cura Prânica. ↩︎
  5. Simpatizo também com um pessoal da teosofia do começo do século XX, como Besant, Leadbeater, Powell e Alice Bailey, por suas contribuições às teorias do funcionamento técnico do mundo energético. Mas é um pessoal que também precisa ser lido com MUITO discernimento, porque tem umas coisas escabrosas no meio (especialmente no Powell). ↩︎
  6. O diálogo Timeu é especialmente influente. ↩︎
  7. Recomendo demais a obra do dr. David Litwa nesse assunto. ↩︎
  8. Nesse sentido, a gente aqui do Brasil é extremamente privilegiado. ↩︎

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